07/06/2022

200 dias

Foram exactamente duzentos dias entre aquele em que, agarrada ao papel, na avenida cheia de trânsito no chão e aviões no céu, percebi que tinha chegado o momento de me fazer forte e enfrentar a fera, e ontem, quando o médico me tirou a cruz das costas, as correntes dos tornozelos e a corda da garganta, e me disse que estou livre, matei o monstro, a quimioterapia limpou-mo do corpo. 

Estávamos a lanchar, ela e eu, amigas desde os dez anos, já perdi a conta a quantas décadas tem esta amizade. Tínhamos o sol em cima, a luz toda só nossa, quando me lembrei de lhe mostrar em que pé está o meu cabelo. Levantei um dos lados de Natércia e os olhos dela logo marejados, eu sem cabelo, ou melhor, com um cabelinho pequenino, e de repente também sem chão, sem saber o que dizer, “O que é que foi? Ficaste comovida por veres o meu micro-cabelo?”. Agarrei as duas mãos dela, queria consolá-la do mal que tinha acabado de lhe provocar, e nisto ela dá-me a resposta mais bonita que podia ter dado: “Não, é que me lembraste muito o teu pai”.