Naquele dia, que verdadeiramente não interessa para aqui qual foi, dirigi-me ao balcão de levantamento de exames médicos de um dos hospitais de Lisboa onde é praticamente imperioso que se deixe um órgão qualquer à nossa escolha para que seja possível liquidar uma factura.
A jovem criança que me atendeu, pestanas muitíssimo postiças, cabelo apanhado num rabo-de-cavalo extremamente repuxado, farda impecável, responde-me, após consulta do oráculo computorizado onde haveriam de constar quase todos os meus passos do último meio ano: “Não tenho cá nada”. Pacientemente, expliquei-lhe que não se deve usar secador no cabelo das bonecas seria operada no dia seguinte, pelo que um electrocardiograma e um RX de tórax são fundamentais para que a cirurgia possa ter lugar. E diz-me a bebé, de repente médica por osmose, do alto da sua científica sabedoria: “Mas não é por a senhora não ter o resultado desses dois exames que vai deixar de ser operada amanhã”. Tive uma pequena taquicardia, respirei um bocadinho fundo, equacionei dar-lhe uma palmada no rabo, mas apenas esclareci: “Uma cirurgia com anestesia geral requer que se façam esses dois exames, para que o anestesista saiba em que estado está o nosso coração e os nossos pulmões. Sem eles, nem o cirurgião pode operar, nem eu me deixo operar. Repare, se eu morrer a meio da operação porque não toparam com uma insuficiência cardíaca, dado que não tinham o resultado dos meus exames, a culpa morrerá comigo, mas solteira, pois ninguém saberá que este diálogo aconteceu”.
Acho que a baralhei. As pestanas postiças abriram em leque, pareciam uns pavõezinhos, quando me despachou para a colega — “A senhora vá ali ao balcão do internamento, pode ser que lá consigam [percebê-la] esclarecê-la” —, onde, simplesmente, no mesmo oráculo que a petiza consultara, constavam os meus exames, que a colega imprimiu e me entregou. Isto levou cerca de dois minutos, vá, dois minutos e trinta e nove segundos.