Saí do elevador em direcção ao parque de estacionamento subterrâneo, só tinha descido um andar, mas eu agora posso, deixou de me apetecer fazer o exercício mental de descer um lance de escadas, e vi-o a alguma distância, parado no meio da faixa, uma chave de carro na mão, um papelinho na outra, triste, só e abandonado. Não percebi, no primeiro relance, se teria algum atraso, demência ou — claro que a vaidade do meu vestido roxo me fez ponderar, apesar dos evidentes sinais de quimioterapia que carrego — algum tarado daqueles que vão para a via pública com conversa da treta só para poderem meter-se com mulheres. Procurei desviar-me, mas ele há coisas. Quis fugir-lhe, é verdade, estou farta que me magoem, me piquem, me dêem coisas a tomar que me adormecem, não a dor, mas toda eu, e vinha de mais um hospital, por isso achei que podia.
Preciso de ajuda, disse-me ele. E era uma criança, afinal, olhos, lábios, ombros e barriga descaídos, o corpo todo desistido, o olhar embaciado de vidro martelado molhado, os cantos da boca a tremer para baixo, fez-me lembrar eu quando a minha mãe me deixava no jardim de infância, ou demorava a chegar, ou alguém me fazia mal — o que, segundo os meus cânones de migalhinha frágil, era todos os dias —, que perdia o controle da musculatura dos cantos da boca e, não querendo chorar (não sei se por valentia ou por cobardia), ficava para ali naquele tremor denunciante, assim como este homem.
Não consigo encontrar o carro da minha filha, suplicou então. A chave que trazia na mão era o comando de um carro, o papelinho que tinha na outra, um bilhete de entrada no parque, com a data, a hora, a matrícula e mais um ou dois pormenores que não ajudavam grande coisa para a agora nossa busca.
Qual é o carro da filha do senhor? — Eu, na esperança de que ele me dissesse “um carocha encarnado”, mas claro que recebi em troca “um Citroën cinzento”, oh Cristo, para pessoas como eu, Citroën cinzento são todos os carros, desconfio mesmo que cá em casa temos três Citroëns cinzentos, esta resposta, dada a outra qualquer, ainda dava pano para mangas, “um C3, ou assim?”, comigo não, os carros são todos iguais, com ligeiras nuances, mas vai de não desistir: peguei no comando do senhor, que é como quem diz, tomei o comando da operação, apontei para o fundo do parque, premi o botão de abertura das portas, mas nada. Tentei com o do fecho das portas, o mesmo insucesso. O botão do meio tinha um símbolo com um farol desenhado, tentei esse e bingo, o carro iluminou-se a seis metros de nós.
Não vi o homem ficar alegre, aliviado, agradecido, ou expressar qualquer emoção. Era só eu, quando me passava o tremor dos cantos da boca porque já não me doía nada.
(Já faltou mais para que um destes dias também ninguém mais me magoe, me pique ou me dê coisas que me adormecem, toda eu.)