Sinto-me um pouco doida cada vez que atravesso os portões do Júlio de Matos, agora (há que anos) Parque de Saúde de Lisboa. Não há uma única vez que não pense — não é uma memória, pois não me lembro — que a minha mãe me transportou para ali ainda na alcofa, e que aquele há-de ter sido dos primeiros ares que respirei, no silêncio dos inocentes e no sono dos justos. Acredito que nunca mais dormi como dormi ali.
A impressão que tenho é a de que, mesmo quem não é doido, passa a parecer ser quando ali entra. Ninguém se distingue de ninguém.
Procuro o Instituto Português de Sangue, e sei que, de todas as vezes que já lá fui, em nenhuma fui capaz de aprender o caminho. Sinto-me outra vez um pouco doida por isso. E por saber que me vou perder e ir parar a outro pavilhão qualquer. Os sinais direccionais acabam a meio do percurso, e há uma altura, fatal, em que entro em contramão. Sei que o fiz, porque avistei o sinal de proibição, mas, ainda assim, estou sem alternativa, uma vez que para a direita também é proibido. Só fazendo marcha-atrás, e isso não quero fazer, por me parecer que o edifício do sangue está mesmo ali à esquerda. Percorro duas ruelas em sentido contrário e aparece-me a casa cor-de-rosa (que seria azul-bebé, no caso de termos sangue azul, penso eu assim, e sinto-me outra vez doida) em todo o seu esplendor.
Respondo ao questionário dos dadores com a mesma monotonia de sempre, nada mudou na minha vida desde há anos para cá. Estou só mais velha e talvez mais doida.
Pergunto ao funcionário da recepção se não há brindes. A minha caneta do IPS secou, os porta-chaves que ofereceram em tempos nunca tinham o meu grupo sanguíneo. Ele responde que "foi tudo em Dezembro" e remato com "Eu só cá venho pelos brindes". O homem olha-me como se eu fosse doida.
Volto a responder ao questionário da entrada, agora verbalmente, perante a enfermeira da triagem. Pergunta-me se eu tenho o peso mínimo para dar sangue, asseguro-lhe que sim, mas, mesmo assim, aldrabo no número de quilos, pois se nem eu acredito, ela também não acreditaria: uma coisa de doidos.
Sou obrigada a tomar uma refeição maioritariamente líquida antes da dádiva. Bebo um pacote de sumo, que me salta pelos ares e aterra em cima da mesa. Parece que bebi vinho, e fico com ar de doida quando me rio da circunstância.
No momento em que entro na sala de recolha, o enfermeiro olha-me, esbugalhado, esgazeado, olhar de doido, e grita:
- [Linda Blue], lembra-se de mim? — Respondo a verdade:
- Lembro, perfeitamente!
- Não lembra nada...
- Lembro, porque uma vez filmei a minha dádiva e é a sua voz que aparece no filme.
- Oh... disso não me lembro eu...
Pergunta-me em qual braço quero a agulha, digo que tanto faz e pergunto se também pode ser numa perna. Ele responde que "É onde houver veias", revejo mentalmente o sistema venoso profundo e endoideço um pouco.
Sento-me na marquesa onde me vou deitar e desmancho-lhe um braço. Caem as almofadas, caem os sacos de recolha.
Sento-me na marquesa onde me vou deitar e desmancho-lhe um braço. Caem as almofadas, caem os sacos de recolha.
- Agora sim, estou pronta para outra.
À saída, perco-me de novo, no caminho de regresso à normalidade.
Não sei se sabes, mas os dadores de sangue têm direito a folgar no dia da dádiva. Ao fim de duas dádivas (no mesmo ano), ficas praticamente isenta das taxas moderadoras...
ResponderEliminarboa tarde linda
Sei. E das taxas também. Mas eu não beneficio de nada disso, porque sou liberal e também porque das vezes que recorri ao sistema nacional de saúde, errr... enfim, tenho sorte (ou não).
EliminarBoa tarde, Moonchild
Nas vezes em que dei sangue, podia comer depois e ganhei o hábito de uma 7UP e meio croissant - na primeira vez achei incrível que fossem oferecidos :)
ResponderEliminarDão-nos um lanche antes e outro depois. Eu aproveito os dois.
EliminarMas o sangue é um bem muito mais precioso do que qualquer lanche :)
ato que não posso praticar pr questões de saúde, mas que me fica sempre um engulho, fica, quando vejo a generosidade ali toda, a sair de uma veia qualquer.
ResponderEliminarbom fim de semana, Linda.
beijinhos,
Mia
A mim, move-me pensar que um dos meus pode precisar um dia, e houve alguém que deu. Se não pudesse dar, teria pena, mas não mágoa. Há tantas maneiras de dar, e tu dás, com certeza.
EliminarBom fim de semana, Mia
Beijinhos
Podes ser um pouco doida, mas és liiiiiiinnnnnnndaaaaaaa!
ResponderEliminarBeijocas repenicadas :)
As doidas também podem ser lindas, assim como a inversa. Tu saberás melhor do que eu :)
EliminarBeijocas, Mary!