19/07/2018

podia ser (a) minha mãe

Saímos da padaria, ela à minha frente, uma muleta num braço, um pequeno saco, com um pãozinho lá dentro, na mão do outro. Pretendeu descer os dois degraus que a separavam do passeio, apoiou o braço que levava o saquinho num murete logo ali ao lado, pôs o pé da muleta no primeiro degrau e o saco caiu ao chão. Desviei dois passos do meu caminho que havia de ser feito com duas pernas saudáveis até um carro confortável, e segurei-lhe o braço sem muleta, dizendo Vamos descer juntas, pois que sempre me deixou desconfortável o verbo ajudar. Assim fizemos, alcançámos o passeio em segurança, entreguei-lhe o saco que, nem quero imaginar, seria o jantar dela, até que ela disse, Que Deus lhe dê tudo o que a senhora desejar, e eu debati-me entre duas verdades íntimas e, se calhar por isso, dolorosas, Já deu -, pensamento posto nos meus filhos -, Já tirou também -, pensamento posto nos meus pais. É esta a lei da vida, dizem, e eu aceito, quem sou eu para contestar leis, ainda mais se forem dessa tal vida? Fiz o pequeno percurso até ao carro de cabeça baixa, envergonhada de mim, dos meus pensamentos, da minha heresia ou da minha descrença. Ela seguiu, desapareceu logo, talvez se tenha refundido com a calçada ou com o ar, posso tê-la sonhado, quem sabe não ando a delirar de saudades, se ela podia ser minha mãe.

4 comentários:

  1. Durante muito tempo, habituei-me a ver uma senhora, num dos restaurantes que frequento, a almoçar com os filhos: frágil, tão frágil que a pele parecia de papel de seda, os olhos já ausentes no céu que se via pela janela, debicando como uma andorinha. Depois, um dia, vi os filhos a almoçarem sozinhos; falavam de médicos, de hospitais, de urgências. Daí para cá, os filhos estão lá sempre, mas à mãe não mais a vi. Dou por mim a pensar no que lhe terá sucedido, embora saiba a resposta... É a lei, dizem, mas não precisava de se fazer cumprir de forma tão impiedosa com quem tão frágil se torna.

    Boa tarde, LB.

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    1. Foi esse percurso que percorremos, exactamente.
      Sobretudo, é uma lei que não precisava de se fazer cumprir para quem é tão amado. Quem fica nunca está preparado, por mais que se mentalize. E voltar aos lugares e não encontrar quem falta é a mais dolorosa ausência. O luto começa aí.

      Boa tarde, Xilre

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  2. «Não me esqueci de nada, mãe.
    Guardo a tua voz dentro de mim.
    E deixo-te as rosas.

    Boa noite. Eu vou com as aves.»

    de Eugénio, com um abraço forte e um coração apertado, sabendo que o inevitável (também por estes lados) se aproxima.

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    1. Tens sempre a palavra certa, minha flor.
      Não te digo que tenhas força, que foi o que toda a gente me pediu a mim. Guarda o amor contigo, que só ele nos salva, também nas horas más. E recebe também o meu abraço, cheio de braços.

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