30/09/2025

Remada alta

Agora meti-me noutras actividades no ginásio, não porque me tenha fartado de dançar, mas por não ter outro remédio: uma das instrutoras engravidou, outro envelheceu. Ela ainda pulou e saltou até aos quatro meses, depois ganhou juízo. Ele começou a fazer coreografias só com os braços, para isso sento-me numa cadeira em casa, exercito-me assim e não pago nada. Claro que não desisti da dança, mas fiquei confinada a um dia por semana e eu queria mais um bocadinho, se não se importam. A piscina está fora de cogitação, porque, embora tenha o fato-de-banho mais bonito do planeta e uma touca estupendaça especial cabelos compridos, só a parafernália que uma pessoa carrega para essas aulas, já me cansa a beleza. 

Comecei então a fazer Aeróbica, onde, apesar de ser a pior aluna da sala, o instrutor acredita imenso em mim, acha que tenho potencial. Mas eu, ao fim de duas piruetas, já não sei para que lado é oeste, quanto mais onde está o espelho. E ele dá-me coragem e incentivo para continuar, mas acho que, interiormente, está a divertir-se à doida. 

Continuei com o meu Stretching e experimentei algo que dá pelo nome de Dumbbels, que mais não é do que uma tortura macaca que já pratiquei noutro ginásio sob a designação de Body Pump. Aquilo, a pessoa entra já nervosa porque sabe que vai sofrer. O instrutor (já fiz com quatro diferentes) diz que “vamos trabalhar todos os grupos musculares”. Ahahahahaha. Vamos triturar tudo o que não seja osso nem banha e, de caminho, somos voluntariamente sujeitos a todo o tipo de sofrência. Parece a tropa. Alteres, remada alta, agora nove repetições, agora outras nove, agora fica lá em cima, faz flexões em dois-dois, três-um, agacha e fica, insiste oito lá em baixo, agora mais oito, vamos aos lunges, põe um pé à frente e outro atrás e desce até tocar com o joelho no chão, insiste e pára lá em baixo, agora vamos só aos abdominais e está feito, em dois-dois, em cruzado com a perna esticada sem bater no chão. Camelo. Apetece-me assassinar o instrutor daquele dia, mas depois vem uma sensação tão, excuse my potuguese, porra, gosto desta porrada, que volto.


22/09/2025

My new me

Presa por um dos meus trabalhos, que anseio por que surjam e, quando acontece, entro em parafuso, acho que prego martelado e torto, ai porque não tenho tempo, ai, porque o prazo é sempre espartano, ai como é que atendo à casa, cada vez mais pequena, ou, deve ser isso, cada vez mais vazia, sempre me convenci que as casas aumentavam de tamanho quando saía uma pessoa, afinal encolhem, sai um e leva o quarto, a cadeira à mesa, os alimentos do frigorífico, as tralhas e ele mesmo, a gente a ver as paredes avançarem para nós por encolhimento do lar, não sei explicar isto muito bem, mas há um fenómeno arquitectónico quando um vai embora. Podemos falar alto, andar em pêlo pela casa, mas que vantagens tem isso, se não uso nem quero nenhuma das duas? A televisão só nossa, esta sou eu, a ver televisão. 

Faço uma pequena pausa para ir almoçar, primeiro tenho que dar dois ou três suspiros de alívio, de cansaço e de desânimo, é um trabalho duro, podiam até pagar-me o meu peso (não quero falar sobre isso, a comprimidagem ofereceu-me um corpo que eu não reconheço lá muito bem) em ouro, que seria sempre mal pago. Suga-me as energias, a alegria e a vontade de me mexer, nem que seja para assoar um espirro. Vou a levantar-me da cadeira que me assa e recose e frita e salteia e estufa o rabo, e leio no canto do computador a hora, três minutos para a uma, e o dia, dezoito. De repente, acende-se um fósforo na minha memória, "dia dezoito é dia de consulta", a minha agenda são consultas, e só me dou tempo de passar das calças de ganga e t-shirt cinzenta para um vestido de cetim (ainda bem que não agarrei nenhum de lantejoulas. Ah, já sei, não tenho nenhum) e sair a voar para o consultório. Estou sem tempo, estou sem carro, estou sem almoço, mas avanço, o consultório fica a trezentos metros da minha casa, o que é um aborrecimento de saltos altos. A médica atrasa-se sempre, eu sou a primeira da lista, devia ir a assobiar e a colher flores. Em vez disso, chego oito minutos depois das treze, sento-me a respirar fundo e a readquirir-me, alinhada, concentrada no que vou dizer. Ajeito as fitas das sandálias que, entretanto, entraram em roda livre, limpo o lipgloss que tinha posto, já me está a enervar os lábios e evito o contacto visual com a funcionária do balcão, que tem dois capachos, em vez de pestanas. A médica chega praticamente às duas. Gosto daquela médica. Ouve-me, e, conforme eu vou relatando as minhas coisinhas, ergue as sobrancelhas, junta-as, carregando o olhar, descai o pescoço com a boca em linha, ou então ri-se com gosto, a ponto de ficar descontrolada e eu ter que esperar que lhe passe. 


03/09/2025

Eu agora perco

Acho que nunca fui roubada na vida, que me lembre ou tenha dado por isso. Perco coisas, mais do que pessoas, e só faço esta comparação porque, torturada com a crítica de que guardo tudo, mudei para o lema seguinte: Se as pessoas acabam, por que é que as coisas não hão-de acabar? Assim, tornou-se mais fácil deitar fora tesouros antigos, inutilidades queridas, coisinhas que ainda poderiam vir a fazer muita falta, mas que depois, não sei porquê, nunca fizeram. Perco coisas dentro de casa, de tal modo, ainda assim, tenho gavetas e móveis atafulhados de tudo o que só eu gosto, porque escolhi, porque usei em acessos de alegria e festa, porque não servem a mais ninguém, toda a gente é magra, toda a gente é gorda no meu país das maravilhas. Mas também ofereço às filhas, ponho à venda — e vou ao Correio com aquela falta de ar das despedidas —, dou à que fala muito, meto nos contentores — lavado, passado a ferro, dobradinho num saco fechado como um presente —, ou encafuo no lixo, mesmo a rasgar o fundo do saco, que corresponde ao diabo que o carregue, quando estou na raiva, porque já não serve para nada, deu-me azar, só teve utilidade para chorar um dia, nem para trapos terá serventia. Assim, estou convencida de que as minhas coisas ganham perninhas em casa, algumas delas não gostam de mim, outras estão num tédio que querem lugares mais arejados e gente mais viva do que eu, e então partem, para não mais voltar, pois jamais as revejo. Na rua, tenho a certeza de que ganham asinhas, caso contrário teria encontrado aquele brinco que perdi na praia este ano e, horas volvidas, lá fui ver dele, só me faltou peneirar o areal todo, mas sei que só não o encontrei devido às asas ou então ficou debaixo do rabo de alguma pessoa estendida ao sol e depois o mar levou, que é onde ele será mais feliz. 

Vinha aqui contar que este ano já tomaram outros caminhos um par de óculos de sol — que eram o meu amor amado sob a forma de óculos, estive a isto de chorar, foram tão caros, tinham dez anos, as melhores lentes que algum dia usei, não me escorregavam pelo nariz abaixo, tive que correr o globo por uns iguais, nem a marca já tinha reservas, lá fui ao mercado dos aflitinhos e zás, um quarto do preço de há dez anos —, o tal brinco, um anel fininho de prata pelo qual sentia bastante simpatia porque representava o ciclo da vida — foi o que me disseram na loja e eu engoli, a pensar "Mas o que raio é o ciclo da vida? E por que raio tenho eu que o amarrar ao dedo?", quando na verdade eu gostava era do anel no meu dedo pequenino e até já comprei outro igual, também sumiu do meu radar outro anel igualmente do ciclo da vida [she´s a maniac], mas mais pequeno, um ciclinho, uma vidinha, que a que fala que se desunha encontrou numas luvas de nitrilo que eu tinha usado para fazer o bolo de aniversário do meu bebé, que olhem, não tardam muitos dias, vai para longe de mim, não sei o que será feito de mim, se calhar perdida, não sei como vai ser ele longe e eu cá, a perder coisas, paciência, desde que não perca pessoas, está tudo na boa das saudades infernais.