Então, lá fui ao serviço público da capital de distrito mais próxima da minha residência, suficientemente longínqua para que nem com binóculos visse as bichas que contornam quarteirões com vista à renovação do cartão de cidadão. Cheguei às 9 em ponto da madrugada, hora a que as portas se abriam de par em par. Porém, já entrei atrás de outros sete, julgo que regionais, que devem ter ali aterrado antes do nascer do astro: quase todos senhores de muitíssima idade, naquela faixa em que ainda levam bilhete de identidade (perpétuo) e só vão mudar porque algo na identificação se alterou, tipo o estado civil. Curiosamente, nenhum deles tirou senha prioritária. Mesmo o primeiro, e apesar de o ser, podia. E a terceira, bem mais velha do que a segunda, amorosa, de sapatinhos de fivela, a fazerem lembrar as sandalinhas inglesas das minhas meninas, quando era eu a decidir o que é que elas calçavam.
Bom. Eu era a 8, portanto. Fiquei ali, cotovelos em cima do balcão, a assumir o semblante de sala de espera, enquanto apreciava o redor: pregado na parede, um calendário de uma funerária com a imagem de um pássaro a alimentar as crias no ninho; um homem de mangas arregaçadas, do casaco incluído, calças de ganga largas com um autocolante colado no rabo, mãos nos bolsos, falando alto, andando para lá e para cá e eu a começar a ficar nervosa; oito secretárias para os funcionários, seis que foram sendo ocupadas aos poucos, cinco mulheres, um homem, só dois a atender, as outras quatro extremamente ocupadas com o computador e papéis, todos da mesma idade, todos iguais: vários quilos acima do peso para o índice, todos de óculos, todos de uma concentração coordenada e pouco simpática.
Fui atendida por uma das cinco, que não gostou de mim. Eu sei que ia num dia de bad hair, com cara de agarrada a precisar de cafeína, mas, essencialmente, acho que a endémica ficou azeda porque eu era uma forasteira. Pronunciou a bold sublinhado a palavra "Lisboa" e suspirou quando lhe disse que preferia ir ali buscar o cartão de cidadão do que ter que me meter nas filas da capital - e pronunciei a bold sublinhado "capital". Perguntou-me se queria ficar com a mesma fotografia (que tem nada menos que cinco anos) e eu respondi que Isso não me parece muito honesto, daqui a dez anos tenho na minha identificação uma fotografia com uma décalage de quinze anos, e ela, nauseada, mandou-me meter atrás de uma barraca de ferro e olhar lá para um óculo, só faltou gritar Não respire. À primeira chapa fiquei horrível, para além de descentrada, só se via uma parte do meu ombro esquerdo. Ela que isso não interessa, eu ai que era o que faltava, quero tirar outra, e lá reiniciei a sessão fotográfica. Contudo, não havia modo de ficar bem na fotografia, literalmente, pois o óculo ficava uns centímetros acima da minha testa, e, convenhamos, ninguém fica bonito a olhar de baixo para cima, com aquela subserviência, ainda mais se estiver aterrorizado, como era o caso, pela semelhança entre o cubículo e umas máquinas de RX com as quais fui confrontada em pequena, que ainda hoje me assusto só de me lembrar daquilo a espalmar-me contra a parede e não haver chinfrineira da minha parte que cessasse o processo.
Depois a seca que me saiu na rifa não me quis medir, o que achei mal. É que foi a minha última esperança de entrar na velhice com alguma dignidade. Isto, porque tenho assente nos meus documentos identificativos desde para aí os dezassete anos, que meço 1,68 metros. É o que, efectivamente, acho que meço, mas existe a possibilidade de ter um dia dado a volta à cabeça a um funcionário do Arquivo, ter sido medida de saltos altos e lhe ter dito que não me retirava nem um centímetro por conta das andas. Bom, isto era segredo até hoje. Mas vamos acreditar que são 168 centímetros e que serão até daqui a dez anos.
Às tantas, a pessoa desapareceu, foi lá dentro fazer não sei o quê, até pode ter sido cocó. Cônjuge entra na sala e pergunta-me qual era a senhora que me tinha atendido, e eu, sincera, que Não sei, hás-de reparar que têm um denominador comum, ainda não percebi se é sempre a mesma que vai mudando de roupa e de secretária. Penso que era uma destas.
Então, uma lá do fundo da sala, grita na nossa direcção: Os senhores, é para divórcio?
Olha se fosse.
E, mesmo não sendo, não foi chato?
Não. Não me parece, pelo menos... Nos próximos cinco minutos, não de certeza.