30/09/2014

Não sei se prefiro o pai ou o filho

Vinha eu a entrar à minha porta, segura e tranquila do meu caminho, quando se me dirige um menino com pouco mais de um ano, olhos azuis, o que não tem qualquer importância, mas fica aqui bem, pese embora - embora, passo o pleonasmo, não pareça -, eu não tenha a mania dos olhos azuis, que gosto bastante dos meus e são pretos, e quem não goste é racista, e os do meu pai eram castanhos e eram os olhos mais cheios de adoro-te que eu já vi na minha vida, dizia eu, vem o rapazinho, aponta para mim e exclama assim: "Mamã!"

Ora, isto, parecendo que não, mexeu comigo e encheu-me o dia de sol e também de luz. Por acaso, não estava a chover, hossana nas alturas.

Conforme toda a gente sabe e, se não sabe, passa a saber, quando as crianças começam a falar, chamam mamã a tudo o que é agradável, confortável e ou bonito. E o pai daquela criança, apesar de jovem e giro, demonstrou imediatamente ser igualmente detentor de rara inteligência, ao proferir a seguinte frase: "É bonita, não é?". 

Hã?  Foi bonito foi da parte dele, demonstrar que sabe que é nesta idade que os bebés associam os conceitos de agradável, confortável e bonito com o conceito de mamã. E que não me considerou meramente agradável nem tão-só confortável. Olha, gostei dele.

Pão.

29/09/2014

Poder de redenção

A vida dá-nos sinais, nós só temos que aprender a lê-los. De todas as vezes que perguntei, este fim-de-semana, e, infelizmente, foram muitas mais do que queria e costumo dizer "Mas onde raio é que andas com a cabeça?", ontem recebi a resposta, sob a forma de bolinhos, "E tu, onde raio andas tu com a tua?"

Ofereço-me para ajudar a fazer bolinhos. Diz-me ela que vá pondo o forno a 180º, enquanto, juntas, moldamos os bolinhos. E eu ponho. Ou acho que pus. Estava a 200º e rodei o botão para a esquerda. Os números menores estão à esquerda dos números maiores, nos botões redondos, certo? Não tenho desculpa. Tenho aquele forno há vinte e um anos, e uso-o quase diariamente.
Moldamos dois tabuleiros de bolinhos, ela polvilha-os com côco em pó, com aquelas mãozinhas pequeninas e delicadas, cheia de rigor científico e mimo, dois ingredientes essenciais nestas coisas da cozinha. Eu li "Como água para chocolate" e acredito piamente nisto.
Queimei-lhe os bolinhos todos. Por um engano imperdoável, pus o forno a 220º.
Sem saber o que fazer à minha vida, comi, mastigando-os com sabor a lágrimas e carvão, os sete bolinhos mais pretos. Sete. Mereço engordar sete quilos. Mereço que todos os meus vestidos deixem de me servir.
Ela, pequenina e delicada, cheia de rigor científico e mimo, fez, sozinha, mais dois tabuleiros de bolinhos.


28/09/2014

Por acaso, tenho esta curiosidade

Imagina que encontras, caída na estrada, perto de uma bomba de gasolina, uma carteira de homem, que até já foi atropelada, mas que tem lá dentro, intactos, todos os cartões da pessoa, desde o de cidadão à cédula profissional, aos multibancos e visa, enfim, a vida toda de um homem, e 535 euros.

O que é que fazes?

Preciso de respostas. Só mesmo para saber.

26/09/2014

Isto há-de ser uma espécie de stress pós-traumático...

Lisboa, segunda-feira, basicamente, afogou-se.
Lisboa, quinta-feira, um dia perfeito. Eu quero morrer num dia assim, que é para não doer tanto. Nem uma brisa, nem um grau a mais, nem um grau a menos. Nem mesmo um grau de humidade, e eu com um cabelo lindo, que é como eu o vejo lindo. Dominado, um leãozinho meigo. Um céu azul daquele azul que só a Primavera traz, o azul de uns olhos azuis que eu nunca vi, só pontuado com uma ou outra nuvenzinha branca, como o Futebol Clube do Porto, carago, ou como os desenhos das crianças, que têm sempre céu, sol, nuvens, uma casa, com chaminé, fumo a sair e um caminho a sair da porta, que vai dar ao fim da folha de papel. Uma pessoa da minha idade tem pensamentos assim, que dia tão bonito para se morrer, a duzentos à hora contra um muro, haverá morte mais santa, quais agora a dormir? Se forem como eu, com sonos tortuosos e pesadelos amiúde, a morte a dormir é uma piada de mau gosto que de santa não tem nada. Ainda assim, a da velocidade está fora de questão, nem o meu super-carrinho atinge essas velocidades nem eu carrego no pedal com essa força toda. E também ainda não tenho pressa.
Até sonhei acordada, só acordada é que consigo sonhar sem que o sonho se transforme em pesadelo, em ir à praia este fim-de-semana. Só posso ter sonhado.
Lisboa, sexta-feira, estou farta de ir à janela. Todos os ruídos da rua me dizem que está a chover. Se calhar é só por ser sexta-feira e por ter perdido, há uma semana, precisamente, o meu Artur. Que nunca foi tão meu como agora, que já não é. Se calhar é só de ser sexta-feira, dia de morte.
Nunca sei quando é que estou a falar a sério.