30/12/2024

Eu tenho problemas com médicos # 32

Acho que me rendi à seita da hipocondria activa: agora vejo qualquer coisinha em mim que não considero normal, e vai disto para marcar uma consulta. A oncologista não me satisfaz, porque posso queixar-me do que quer que seja, que ela me responde: "Isso passa". 

Ainda assim, foi ela que me prescreveu uma mamografia com ecografia mamária, para as quais, paradoxalmente, ia calma como uma preguiça. Não sentia nada de especial nas gémeas, a não ser mil merdas que me deixaram na coitadinha (clipes, cicatriz, uma leve dor na zona), por isso apareci no centro de exames quase aos pulinhos. Não que da vez em que se deu a descoberta sentisse alguma coisa, mas sentia. Apenas receava ser recebida por uma médica que, da vez anterior que havia feito a ecografia, me dissera: "Está tudo bem. Não quer dizer que seja sempre assim, mas desta vez está tudo bem". Só não lhe dei um pum olimpicamente cheiroso e insonoro (crime perfeito) no gabinete porque (ainda) sou uma senhora e (ainda) não faço essas coisas. Desta vez, a médica era de uma simpatia e energia contagiantes, tanto que sacudiu o frasco do gel e (não sei se a ponta estava entupida) aquilo espirrou em todas as direcções, designadamente para a minha cara e cabelo. Mas caguei (não literalmente), estava animada com a perícia da profissional, e, sobretudo, por me dizer que as tinha saudáveis.

Passados uns tempos, fui fazer um exame às miudezas, já nem sei bem porquê. Tinha feito um RX ao tórax por vomitar a dormir (sim, eu sei que é um risco, além do que não me apetece faleceri toda gregada) (desculpem lá o grafismo derivado da secreção), e tinha dado zero, como as contas que batem certo. Então, fui à médica que espreita cá para dentro e ela também não encontrou nada, nem um único bebé, a não ser um lindo órgão, o que me comunicou da seguinte maneira: "Se eu não olhasse para a sua cara, dir-lhe-ia que fosse já fazer o quinto, porque tem o útero de uma jovem". Fiquei sem perceber se aquilo era um elogio, ou se ela só trocou a ordem dos factores, que não é arbitrária: "Se eu não olhasse para o seu útero, dir-lhe-ia que fosse já fazer o quinto, porque tem a cara de uma jovem". Pronto, lá paguei o preço de um órgão qualquer e vim-me embora mais ou menos contente porque carrego um útero jovem, apesar de isso não se ver à vista desarmada (nem armada aos cucos). 

Por falar nisso, há meses que tenho dois sonhos recorrentes: num, estou grávida do quinto filho, toda a gente me diz que sou demasiado velha e não tenho saúde para o ter, mas eu persisto. O único problema que me assiste no sonho é que a minha barriga, ao contrário do que se passou com as anteriores quatro, não cresce. Mas o bebé nasce, pequenino e magrinho, e faz-me a mim a mulher mais feliz do mundo. No outro sonho, tenho as pernas cheias de pêlos e estou a preparar uma queixa (crime?) contra aquela loja que faz desaparecer a pelagem como que por magia, pim, pim, pim. Há pouco sonhei mesmo que dizia no sonho: "Estão a ver por que é que eu sonho tantas vezes que tenho pêlos nas pernas? É porque tenho!". Há que escalpelizar o significado destes sonhos. Fui à nettinha e fiquei na mesma. Para bebé, isto; para pêlos, isto

E assim acabo eu meu melhor ano desde 2021, e começo outro que, em não podendo ser ainda mais melhor, ao menos que seja igual (ao litro, que é sempre uma óptima medida). 

Um ano feliz a tutti quanti. 

 



18/12/2024

Eu tenho problemas com tudo # 39

Tinha um exame médico para fazer, para o qual, segundo a funcionária que me atendeu, devia ir com o intestino limpo, uma vez que, dessa forma, a senhora doutora vê melhor as imagens, sem nada que impeça. Perguntei: Blocos, calhaus?, rimos muito e desligámos. O exame não é intestinal nem estomacal, esta da tripa limpa é novidade, mas quero lá saber, façam-me o raio do coiso e não nos aborreçamos mutuamente.

Entro na farmácia, que frequento muito mais vezes do que gostaria, mas também é, e talvez por isso, um terreno meu, onde me sinto completamente em casa, verifico que estão quatro pessoas acercadas do balcão, duas são casal e já estão a ir-se embora, uma outra está a ser atendida e, num dos extremos, um senhor de idade, aparentemente à espera de alguém, enrolando em tubo um calendário de parede. Sou atendida na ponta oposta do balcão e digo a Jorge, pelo canto da boca: “Microlax, se faz favor”. Ele, exactamente da mesma forma, confirma: “Microlax?”. E eu, no mesmo tom: “Microlax. É que vou fazer um exame e tenho que levar os canos desentupidos, não sei porquê”. 

Nisto, o senhor que enrolava o calendário intromete-se no assunto e pergunta, alto e em excelente som, de modo a que se ouça, pelo menos, até à porta: “A senhora vai fazer um exame ao cocó?”. 

Considero que tenho muita sorte em ter um superpoder de improviso, encaixe, humor e abstracção, nomeadamente para o inesperado e o non sense. Primeiro gargalhei e imediatamente respondi, no mesmo tom: “Não senhor, não vou fazer um exame ao cocó”. Ana Teresa, aflitíssima, socorreu-me assim: “É para o teu filho mais novo, não é?”. “Não, é para o meu cão que, coitado, é muito preso. Não sei se é da trela ou das grades na janela”.


17/12/2024

Desculpa nunca ser Inverno

Não haverá Natal em que eu viva, que não rume à minha Sandra para, numa tentativa muito tosca, desajeitada e débil, tentar por mais e mais uma vez agradecer-lhe, faz agora três anos, ter-me rapado o cabelo, deixando para trás a família e abrindo o cabeleireiro só para mim. Foi no dia 26 de Dezembro.

Vou e ofereço muito menos do que ela merece, naquele dia um anjo da guarda recortado numa medalha de ouro, depois bijuterias com o significado que lhe quero dar, este ano uns brincos com a pedra do azul mais bonito, turquesa, pedra do signo dela do zodíaco, dizem os astros, e cujo significado os homens entendidos lhe deram como sendo “saúde”. 

Apareço sem avisar, embrulhinho cor-de-rosa na mão, digo uma tontice acerca do Pai Natal e abraçamo-nos apertado, dos olhos dela caem lágrimas iguais às daquele dia, sem som nem eco, depositam-se no meu cabelo comprido que as absorve; os meus, secos, nem um soluço, não tenho solução: hei-de ser sempre a mesma bruta, só comigo sou incapaz de me comover, tenho pavor da autocomiseração e a comiseração sufoca-me, sem dó. 

Também foi assim no dia 26 de Dezembro, há três anos.