23/07/2024

Fui a um Açor

Não posso afirmar que fui aos Açores, porque aterrei numa ilha só, a Terceira, cujo nome revela inequivocamente que os nossos navegantes já sabiam contar até três. Com aquele pavor que me assiste quando a ideia é voar, pedi socorro a uma das médicas que me atura e ela recomendou dois xanaxes quando fosse para o aeroporto e outros dois quando fosse para o avião. Assim fiz, e não posso dizer que tenha corrido mal, pelo menos não tive que sacar do saco de papel para hiperventilar lá para dentro. O comissário explicou as regras de segurança caso aquilo caísse aterrasse mal, braços para os lados, braços para trás, braços para a frente, toda uma dança que me deu vontade de lhe ensinar uns passitos básicos de latinas, mas os xanaxes mantiveram-me colada à cadeira, que parecia que tinha utilizado Araldite na raba. De qualquer modo, tinha à frente as instruções do que deveria fazer caso o engenho desse em capotar, e não tinham nada a ver com o que ele estava a dizer: havia uma rampa insuflável a sair da porta e a acabar não sei aonde (no mar?), para uma pessoa se atirar, descalça, qual aquaparque. Não percebi por que é que não é obrigatório irmos todos de fato de banho por baixo das vestes, pois pode ser muito útil. Soube também que, à altitude a que uma pessoa chega dentro daquilo, se atingem temperaturas negativas ao nível do Ártico, o que me levou a lamentar mentalmente que não existisse, na composição do kit de segurança, um para-quedas, um blusão quentinho e umas luvas grossas. Era o mínimo, embora saiba que chegaria cá abaixo com a boca cheia de cieiro até ao nariz. 

Aquilo levantou logo voo, não fez como antigamente, que dava uma voltinha pelas pistas todas e depois começava a acelerar e zás. Agora levantam logo, não dão oportunidade a uma pessoa enervada de se preparar. Voou sem grandes tremuras, e as que sofreu foram avisadas pelo comandante. Por acaso, estive para lá ir protestar que o achava demasiado distraído com mensagens de voz para a cabine, em vez de tomar atenção à "estrada". Mas quem sou eu? O homem mandava-nos manter os cintos apertados, e eu, que levava uma roupa sem cinto nenhum, presumi que era aquela coisa com uma fivela indecifrável que, para apertar, tive que pedir ajuda. 

A Terceira é linda de morrer, mas eu estou viva. Não se vê uma beata no chão, um cocó de cão, um papelinho, uma folha de plátano (deve ser porque não há plátanos). Tem praias de querer ficar a morar ali para sempre, água parada, quentinha como no banho (duche de Verão, mais propriamente), zero porcarias, até me dei à maluqueira de nadar até às bóias. Depois voltei.

Vi a gruta e o algar, desci cento e setenta e tal degraus (o meu TOC põe-me a contar estas m. que não interessam nada) e a seguir tive que os subir. No último, a vontade era deitar-me no chão e fazer a minha sesta, mas aquilo era bastante húmido. 

Toda a paisagem é de cortar a respiração, mas aguentei firme e nunca me faltou o ar. Estava na terra onde existem mais vacas do que pessoas. E ainda vi crias de veado (que podiam ser vacas mascaradas), que sei perfeitamente que nenhum era o Bambi porque ele era filho único.


Ah, e acreditem ou não, abracei o fundador da nação. 

Quando voltei, consultei a médica dos xanaxes, contei como foi, disse que tinha conversado toda a viagem, e ela, estupefacta, perguntou se, com aquela dosagem (0,5 mg x 4 = 2 g) eu não tinha dormido nada. Que não, que nem uma pinga de sono. Engelhou-se toda e disse: "Para a próxima, toma seis". Ainda passo por mentirosa, já agora.


02/07/2024

Leoa negra

Cada vez que ali vou, venho de lá doente. Parece um anacronismo, só ali vou porque também eu. E, de tempos a tempos, convém espreitar se o bicho não está à espreita. Passei para as consultas semestrais, o que foi uma escalada imensa na invisível montanha que tenho para subir, algumas vezes com pedrinhas e espinhos que se espetam na minha carne para me fazerem doer a alma. Basta ter uma doença paralela — gastroenterite, como há duas semanas —, que é ali que vou. Uma espécie de oráculo que sabe tudo e tudo resolve às pessoas como eu, doentes oncológicos. Isso obriga-me a lá ir muito mais do que duas vezes por ano. Quando foi das dores de barriga, na espera daquela sala tenebrosa, encontrava-se um senhor com uma peça plástica na garganta. De minuto a minuto, emitia um som de asfixia e assoava-se por ali. Eu sou forte, já vi muitas coisas, já fui sujeita a dores inimagináveis, mas, naquele dia, enfraqueci até ao limite, disse à senhora que estava ao meu lado que ia desmaiar e agarrei a cabeça para poder baixá-la. Pus a possibilidade de bater com a cabeça no chão, mas pareceu-me que qualquer coisa era melhor do que voltar a assistir à agonia do homem. Ela deu-me um rebuçado, abençoada. 

Foi ontem a consulta semestral. Enquanto esperava, fiquei numa saleta improvisada do hall dos elevadores. Ao meu lado, estava uma enorme africana, braços largos de abraço gordo — os melhores, não é? —, pés gigantes em chinelas de borracha, trancinhas de extensão vermelhas e um vestido maravilhoso, certamente feito à medida, de florzinhas encarnadas. Apoiou os potentíssimos cotovelos na imensidão das pernas, a cabeça tombou-lhe para as mãos de festas grandes e adormeceu. Assim que o fez, ecoou pela sala, pela outra ao lado e pelo corredor um ressonar, um ressoar, um ronco de exaustão. Ao cabo de vinte minutos fez-se silêncio, parou a ressonância que já me embalava a mim também, e acordou uma cara de criança, lisa e bochechuda, que quase ia jurar já ter visto numa imagem pintada, tamanha era a obediência aos cânones de beleza dela. Levantou-se da cadeira, o quadril gigantesco a bambolear no vestidinho fino e dirigiu-se a um rapaz que eu tomei por ser marido dela, a quem tratou por filho. Ele tinha o tumor mais agressivo que já vi ao vivo: num olho, em metade da cara. Tudo tapado por uma espécie de lenço de tecido fino e uma gaze. Não percebi o nome dele, porque as enfermeiras o trataram sempre por "querido" ou "meu amor". De prender a respiração, este sinal que elas, sem querer, dão. 

A mãe, que provavelmente o deu à luz com catorze anos ou menos ainda, estivera afinal a fazer uma reza de leoa, um pedido por conta de uma aflição, uma promessa irrealizável pela sua cria. O trovão que lhe saía da garganta mais não era do que um rugido de leoa acossada.