12/10/2022

A planície, afinal e a final, não existe

Foram muitos meses a ansiar pela planície, vendo-me — quantas vezes de fora para dentro — a escalar montanhas que nunca algum dia sonhei, nem nos meus piores pesadelos, assistindo à minha própria degradação física, combatendo-a com as unhas que me sobravam e os dentes intactos, fugindo de mim com o argumento do cabelo, quase dormindo de cabeleira posta, que aguentei durante a canícula e já com cabelo meu nascido, agarrada à convicção de que, quanto melhor disfarçasse os sinais da doença, menos ela teria hipótese de me esmagar contra o espelho, sempre maquilhada, sujeitando-me a procedimentos estéticos como o das sobrancelhas que, caramba, me fizeram feliz, cheguei aos cinquenta e cinco anos e foi um par de sobrancelhas semi-tatuadas sobre as que não me caíram totalmente que fez de mim uma mulher feliz.

Subi as três montanhas que me propus, ou que me foram impostas a troco da minha vida — quimioterapia, cirurgia, radioterapia —, muito pouco valentemente, é verdade que sem uma lágrima, mas isso é porque não as desperdiço com nada nem ninguém que não sejam os meus filhos, também sem um lamento, a não ser quando um dos meus pés ficou sem unhas e as mãos purgavam — só quem passou conhece o suplício —, sem uma pesquisa na internet por mera cobardia, poucas queixas aos médicos, eles a acharem-me um pouco estúpida, a pobre não sabe o que tem, deixem-na viver na ignorância. Pedras no meu caminho, senhores doutores? Meto-as todas nos sapatos e continuo a caminhar até ter os pés em chaga e aí, sim, ter motivos para ai Jesus.

Pensei que a planície fosse um lugar de paz e tranquilidade mental, que me sentaria num tronco de árvore, a fumar o meu charuto, como um velho do Oeste, só a perscrutar o horizonte, mirando a linha dourada onde a paisagem se some, atenta à possibilidade de o monstro dali surgir a trote para me devorar de novo, mas, afinal e a final, a planície não existe, é apenas um enorme buraco branco — onde não há tratamentos nem injecções nem enfermeiras e uma pessoa fica sozinha, ainda mais, sem saber o que fazer ao tempo que (ainda lhe) sobra —, que vai diminuindo de tamanho e profundidade, até que um dia há-de sair dele pelo seu pé sem olhar para trás, pronta a subir as montanhas que lhe surjam aos olhos, com pedras nos sapatos, se for o caso, e, se tiver que ser, aos gritos de ai Jesus.