23/07/2022

Tetratlo # 1

Quatro compromissos agendados para o mesmo dia, no mesmo hospital. Primeiro, às 13:18 (gosto. Podia ser 13:19 ou 13:17, mas era mesmo 18), análises clínicas. Sou de tal forma pontual, so british, que chego e falta uma pessoa para a minha vez. Sei que não vou demorar, são quinze gabinetes e aquilo é sempre a aviar. Enquanto espero, um velhote cai na rua, fica sentado no passeio, as pernas na estreita estrada onde passam as ambulâncias, um braço esfolado. A mulher grita mais do que ele. Noutros tempos, iria a correr ajudar, perguntar se podia fazer alguma coisa, não sei quê, não sei que mais. Mas agora tenho um calhau no lugar do coração, não posso — nem quero — fazer esforços, e apercebo-me, livre de eventuais culpas, que são precisos três bombeiros para içar o homem. Esqueço logo o assunto, até porque chega a minha vez, gabinete 13. Já estou sentada na cadeira da sanguessuga quando irrompe o casal velhote e mulher aos gritos, ela pedindo ajuda para o marido, que está a sangrar do braço e precisa que lhe façam um curativo. Gabinete 13, repito. Acredito que a personagem veio a correr atrás de mim, pois teve que correr o corredor todo desde o 1 para se ir enfiar no meu. A técnica em protesto pouco veemente, que ali não se faziam curativos, mas após uma frase onde se incluía a palavra “órina”, lá pôs um penso rápido no braço do homem. Entrementes, eu bufava a minha sorte macaca, mas por que raios a mulher havia arrastado o homem até ao gabinete que era nada menos do que o décimo-terceiro mais longínquo da porta? Noutros tempos, ainda era capaz de limpar a ferida ao homem, ralhar com a sugadeira de sangue que um band-aid não era suficiente, accionar connects para o internarem e ainda me alistar nas Carmelitas Descalças. Mudei muito. Ando a aprender a pôr-me em primeiro lugar em todas as ocasiões da minha vida. Não que antes me pusesse em segundo (plano), era em último, mesmo: nos escafundós da fila, onde já ninguém me via, nem eu própria a mim mesma. Isso acabou, agora tenho que olhar-me ao espelho e pensar: “Linda”.