13/11/2020

Insondáveis cá meus

Arre, égua, que não ponho aqui os sapatos de salto alto há um mês, precisa e literalmente. 

Então, outro dia fui comprar coisas e deixei Rosinha, minha canoa, num parque aberto ao exterior e às intempéries da vida, daqueles que têm uma coluna dispensadora de cartões à entrada e uma caixa de pagamento à saída, que antecede outra coluna, onde devemos esfregar o cartão num coiso óptico, para que a cancela abra e possamos sair dali para fora (e também onde se deu este bocado da minha vida, que é dos tais que porra, gostaria de pensar que nunca ocorreram, quanto mais vir para aqui registá-los para a posteriori). Isto é de uma ginástica mental que havia de ser elevada a modalidade olímpica.

Bom, paguei o valor que a caixa de pagamento me indicava (local onde há poucas semanas tivera um desaguisado com uma senhora pedinte, a propósito de estar com a máscara na boca, quase dentro dela), meti-me em Rosinha, dirigimo-nos para a cancela, abri o vidro, meti a manita de fora, fiz tudo como manda o figurino, mas não, porque as bruxas me andam no encalce, e nada pode ser assim tão linear na minha existência: deixei cair o cartão para o chão. Pronto, travão de mão, porta aberta, Rosinha a piar, pi-pi-pi, eu fora do carro, o terror: no chão, cerca de dez bilhetes, todos iguais ao que havia de ter sido meu e eu, inadvertidamente, deitara fora. Neste momento, claro que Murphy interveio e obviamente que já havia dois carros atrás da minha canoa. Fiz sinal ao de trás, que havia perdido o bilhete e não sabia qual deles era o meu - isto tudo em linguagem gestual, aquele senhor que acompanha a senhora ministra e a senhora directora-geral é um menino ao pé de mim -, mas o homem estava, sei lá eu, aflitinho para cagar, cheio de pressa, e começou logo a bufar, o que só piorou a minha situação, por me ter deixado assaz enervada. Para já, fiquei logo desgrenhada, ou a sentir-me assim. Era casaco para um lado, cabelos para o outro, a mala a tiracolo (pois que a experiência me diz que jamais volte a sair da canoa sem levar as chaves comigo), e os dez bilhetes no chão, todos iguais. Pus-me então a experimentá-los um a um, enquanto vociferava contra a minha vida. Apercebi-me que quase metade (cerca de quatro, portanto) estavam molhados e colados ao chão, derivados à chuva que caíra não sei quando. Mesmo assim, experimentei esses lá no sensor óptico, muito moles e a ameaçarem rasgar-se, uma deprimência pegada pegajosa. No entanto, não havia tentativa, reza ou força mental hercúlea que elevasse a p. da trave para eu sair dali. O de trás sugeriu-me aos berros que fizesse marcha-atrás (para os cerca de cinquenta centímetros que iria conseguir para a manobra, caso ele se esborrachasse contra o de trás dele) e fosse pedir ajuda à caixa de pagamento, e eu desesperei. Já tinha experimentado todos os bilhetes que estavam no chão, nenhum abriu lá o Sésamo, e pensei que ir falar para uma máquina, naquele momento da minha vida, seria o equivalente a pedirem-me para me lançar de para-pente sobre o mar de Dezembro. Entrei em Rosinha, dei aquele suspiro de quem já nada espera que não seja mais um montinho de merda, olhei para a minha mão esquerda e tinha lá um bilhete. Experimentei-o, só naquela, e ele abriu a cancela. 

(Não, não tive sempre aquele bilhete na mão. Foi precisamente com a esquerda que apanhei todos os bilhetes do chão e os experimentei no sensor. De duas, uma: ou aquele foi o último que apanhei e ainda não o tinha experimentado, ou - muito mais provável - quem me abriu a cancela foi o senhor que está fechado dentro da caixa de pagamento, porque o meu bilhete, simplesmente, foi engolido por Nárnia.)

5 comentários:

  1. Até estou zangada comigo pela gargalhada que soltei. Só tu!
    Solidariedade ❤

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    1. Eu vivo dramas pessoais a que ninguém dá valor :D
      Agradecida ❤

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  2. até estou ofegante... cruzes...

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    1. Isto não foi nada, ao pé do que vou relatar a seguir. Que las hay...

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  3. Adorei a descrição! ;) Senti-me lá a ver a cena! Obrigada pela gargalhada que dei. :)

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