03/01/2019

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 60

Estou tranquila, a fazer o meu pagamento nas caixas de self-service, 
(não é verdade, estou sempre a mil, simulando tragicamente mal uma calma que não possuo nem me possui a mim)
quando a senhora encarregue daquela área engraça comigo, vá-se lá perceber porquê,
(uma pobre mulherzinha, cheia de nervos e pressa para ir sabe-se lá onde, tipo coelho da Alice, as compras pic-pic-pic na leitura óptica, a máquina a encravar, "Por favor, aguarde pela assistente", "Olhe, por favor, diz aqui para aguardar, não sei o que é que esta tem hoje, acho que embirra comigo, talvez devesse mudar de máquina, esta minha vida é um desassossego, mais valia ter ido para a fila, que era capaz de me despachar mais depressa", a assistente a vir em socorro, a tocar numas quantas teclas e a máquina a respirar fundo)
(ou sou eu?)
"Por favor, continue a sua compra"
(Tão educada, a máquina, começa todas as frases por "por favor")
"Por favor, insira o seu cartão"
("Por favor, não saia sem pagar")
e vai a assistente e oferece-me uma garrafa de um litro e meio de água, daquela marca que devemos evitar nos velórios [a piada não é minha], porque "um senhor pagou-a e não a quis levar, tem aqui um pequeno defeito na tampa", "Ai, dê cá, a cavalo dado não se olha o dente", mal eu ainda sabia o quanto havia de me arrepender desta mania de seguir os ditames dos ditados. 
Saco cheio até transbordar, na outra mão mais uns itens - dois sacos de Doritos (don't ask), uma embalagem de postas de salmão para o jantarinho do lar, um saco de cenouras (que eu até parece que tenho coelhos em casa, vão-se aos quilos, mais valia ter uma horta na varanda) -, e a garrafa grátis sob um dos braços, vulgo na axila. 
Havia percorrido o quê? Cerca de quatro metros e meio, mais centímetro, menos centímetro, quando me apercebo de que estou a tomar um duche em público, apesar e sobretudo de ter um sobretudo vestido sobre o vestido. A garrafa jorrava placida e candidamente algumas gotículas sobre a minha manga, e eu, incapaz de parar, pousar as tralhas e deitar fora a magana, desci toda a rampa de acesso ao carro com a estúpida a cuspir-me o casaco todo, tendo lá chegado com a manga encharcada, porém a garrafa inteira. Coloquei-a de pé no chão da viatura, mas ela desmaiou logo ao primeiro arranque, e babou-me o tapete de Rosinha. Então, pu-la no encaixe próprio para garrafas, copos e sei lá mais que cilindros que minha Rosinha tem, só que ela deu uma pirueta nos ares numa curva acentuada, e atirou-se para a parte de trás do carro, tendo-me então molhado um dos tapetes traseiros. Foi quando decidi não lhe mexer mais até chegar ao lar, não fosse ela inundar-me o vidro da frente por dentro, e o limpa pára-brisas não ser capaz de me resolver o assunto, uma vez que acho que está colocado do lado de fora. 
Enfim, cheguei com menos meio litro de água dentro da garrafa, poças por todo o lado e a manga do casaco molhada. 
Moral da história: quando leres ou ouvires "grátis" em algum lado, foge a sete pés. Esse cavalo não tem dentes, e ainda te morde o rabo.


4 comentários:

  1. Detesto essas máquinas. Enervam-me.

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    1. Eu também devia detestar, Ana, mas volto lá sempre, com a ilusão de que me despacho mais depressa. Das dezenas de vezes que as utilizo por ano, contam-se pelos dedos de uma mão aquelas em que a máquina não encravou vez nenhuma. Não sei se o problema é ela ou sou eu...

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  2. Serviram essa água no velório e funeral do meu pai. Não conhecia a marca. O meu pai morreu de ataque cardíaco fulminante... foi muito chocante e inesperado, estavamos todos muito abananados, eu vim a correr do UK, os amigos de todo o mundo tb... enfim. Estava eu e a minha irmã sentadas lado a lado num degrau ao lado do caixão, um grupo íntimo de amigos ao lado, muito aparvalhadas, estavam umas beatas quase a pegar-se à pancada sobre quem ia liderar as rezas do terço, quando eu reparo na água que bebia da garrafa e exclamo: "olha, tiveram o cuidado de servir água pé na cova, ao menos!" Foi ali uma risota pegada, um desanuvio completo de nervos e um esvaziar de tensão que fez bem. Chocamos as beatas mas ainda hoje lembramos esse momento com ternura.

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    1. Pelo menos, serviu para desanuviar. Nessas horas, uma pessoa está tão triste, que qualquer input positivo assume uma dimensão e uma graça desmesuradas. A tristeza não se põe em causa, mas precisa dessas lufadas.
      Muito bonita, a tua história. Obrigada.

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