06/11/2018

menino de oiro

Anda o vírus a moer-lhe a barriga há dias, mas não o vejo falhar nem a escola nem o trabalho. Está mais magro, tem estampadas duas olheiras até à boca, mas sai assim mesmo, leva a mochila às costas, e depois veste a t-shirt e o avental quando bate a hora de entrada. Passa frio, sobretudo quando vai à esplanada, mas, para o saber, tive que lhe perguntar. A resposta foi-me dada sem um ai, sem o mais leve queixume. 
Vi-o de longe, reconheci-lhe a silhueta bonita e fragilizada, e levava pelo braço a Dona Manuela. 
A Dona Manuela é uma instituição do bairro: bastante idosa, com a mobilidade muito reduzida - as pernas grossas de edema, arrasta-as o corpo pesado -, que ali almoça todos os dias, e, no final, leva o jantar numa caixinha, dentro de um saco de plástico. À mais pequena contrariedade - que pode ser tão-só por não lhe trazerem naquele exacto momento o pão à mesa -, rabuja. Não reclama, não protesta, não se exalta: rabuja. Haverá um dia em que todos seremos assim, os que sobrevivermos. Imagino que a Dona Manuela passa os seus dias entre a televisão, o dormitar e aquela breve ida a almoçar "fora". 
Acelerei um pouco o passo, desnecessariamente, pois os dois seguiam ao ritmo da passada dela, pé ante pé, atravessando a estrada. Parei a vê-los, esmagada de ternura pelo cuidado dele, pelas quatro ou cinco vezes que verificou que não vinha nenhum carro nem de um lado nem do outro, pelo respeito com que respeitou o ritmo dela, pelo desvelo com que a ajudou a sentar-se no carro (don't ask) (deve morar a cem metros), Boa tarde, Dona Manuela, até amanhã, que imagino serem as últimas palavras que alguém lhe dirige durante todo o resto do dia. Acerquei-me ao de leve, murmurei nas pontas dos lábios És tão lindo, e era de amor feito amor maior o mergulho dos nossos olhos, quando ele disse, Dona Manuela, vinha a falar precisamente desta senhora e agora ela aparece: é a minha mãe.

O meu menino nasceu para ser amado.


8 comentários:

  1. Oh,pá!!! Chorei!!!
    Coisa mais terna!

    Beijo grande para ti e para ele :)

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    1. Mas um chorar bom, está bem, Mary?
      Ele é lindo!

      Beijos, querida :)

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  2. E é desta forma que o futuro mais-que-perfeito do verbo amar se começa a conjugar.

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    1. Com todas as letras e, efectivamente, em todos os tempos :)

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  3. Eu repito-me constantemente, gosto tanto de ti e dos teus. Há tanto amor em vós que consigo discerni-lo no meio de todas as palavras mesmo que não o escrevesses.

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    1. Repete, Be, que essas repetições me sabem a doce. Também eu gosto tanto de ti e dos teus. Tenho saudades vossas, acreditas?
      É um amor sem limites, que tu conheces tão bem como eu...

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