17/10/2018

Agora nunca mais morria uma mãe

Desde a perda da minha, do núcleo estreito que são as minhas relações sociais, já saíram desta vida outras quatro mães. 
As mães deveriam adquirir imortalidade efectiva — não essa, a da memória, totalmente metafórica — no momento do nascimento dos filhos. Isto seria uma espécie de garante, se não do aumento, pelo menos da preservação numérica da população mundial. Depois eram livres de entregar a sua imortalidade aos filhos, assim que o achassem conveniente e necessário. O Mundo seria muito melhor, e tudo seria mais justo e harmonioso. A cada filho, uma imortalidade renovada, uma possibilidade nova de abnegação. Não creio na existência de mães que não o fizessem sem pestanejar, assim a vida dos seus filhos corresse perigo. Caso contrário, à mais ínfima hesitação, merecido seria que a sua mortalidade fosse restabelecida, no imediato momento em que a dúvida as acometesse.

Quão cravejado de erros está este raciocínio, pois se fosse possível a uma mãe fazer a entrega da sua imortalidade a um filho doente, então regressaria à sua condição de simples mortal, e, consequentemente, voltaria a poder acontecer a nada simples morte de uma mãe.

Custou-me mais do que os outros, este último adeus que fui dar a uma mãe. Na verdade, ia acompanhar uma filha minha, que, por sua vez, ia acompanhar a amiga, filha daquela mãe a quem íamos dizer não vás. Ou melhor, não vais. Para sempre ficarás, mãe desta filha ainda demasiado incapaz de não te ter aqui. (Não sei se existe uma idade para se ficar sem mãe.)
Sei que a vi chorar nos degraus, e depois junto do corpo da mãe. Os meus olhos picavam quando tivemos que desenlaçar o abraço em que ela, enorme e muito magrinha, por momentos pequenina, me soluçou no ombro. Pedi-lhe apenas que me deixasse dar-lhe um beijinho, e assim fiz, acariciando-lhe o cabelo louro de seda. Retraí o instinto, que me impelia a dizer-lhe que, quando precisasse de mãe, lhe podia dar um bocadinho, daqueles tantos que ainda tenho, e me sobram nas mãos, nos bolsos, no regaço, no colo, nos dois ombros — mesmo que inundados de soluços e lágrimas —, nos ouvidos, nas noites de insónia e medo, e, em geral, no coração. Calei o impulso, envergonhada da minha própria soberba, lembrando a velha máxima mãe há só uma, e saí do local, investida da minha simples condição de simples mortal.

4 comentários:

  1. A minha mãe morreu há 7 meses. Confesso que até essa altura tinha a sensação que a minha mãe duraria para sempre. Infelizmente estava enganada.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A minha ainda nem há 4, Ana, o que, em bom rigor, em nada difere. Apesar da muita idade e da fragilidade galopante, também eu achava que ainda a teria por mais uns dez anos. Era tão eterna como ainda é, de outra forma.

      Eliminar
  2. Todos sabemos que existe, que é a única coisa que temos por certa mas, nunca nos havemos de habituar a ela, pois não?

    Boa tarde

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Nunca. Mas é que nunca, noname. Nem nos habituamos nem acreditamos. (Até certo ponto, ainda bem.)

      Boa tarde

      Eliminar