18/04/2017

Jaguar

Comprou, em segunda mão, mas quem sabe em primeiro coração, um carro de marca cara, coisa para o encher e inchar de vaidade. Fez-se impante, soberbo, ufano daquilo. Assim percorre os passos naturais da chegada à meia-idade, necessitando de sinais exteriores de riqueza e status, para afirmar ao Mundo uma valia que, segundo aqueles cânones, deles deverá depender. 
Chega junto de meu Rosinha, minha canoa, coisa linda, coisa boa, ainda com dois mesinhos mal contados da vida, exclama Eh, pá, granda carro!, mal escuta quando lamento o risco que lhe fizeram de uma ponta à outra, e coloca os dois cotovelos na janela do passageiro, a cabeça dentro do carro. Sei que vai começar a feira de vaidades, ocorre-me que posso pregar-lhe um susto subindo um pouco o vidro, mas refreio a irreverência e dou-me ao sacrifício. Percebo que não aguenta nem mais um minuto sem falar na aquisição do seu orgulho, mas que tudo fará para disfarçar a pressa que tem em chegar ao assunto. Primeiro conta que foi não sei aonde, à neve, depois que veio de almoçar não sei aonde, ao peixe grelhado, e termina com:
- Já não cabemos todos no carro.
Tem três filhos, naturalmente que um carro comum fica lotado com cinco ocupantes. (O quarto filho é o filho do carro novo, eu que o diga.) Mas é-lhe fundamental à sobrevivência lembrar que o filho mais velho já tem uma namorada fixa, assim como ele foi namorado fixo durante doze longos anos da mulher com quem casou há vinte e seis, e essa longevidade, feita de antiguidade e resistência, lhe atribuirá, igualmente lá nos tais cânones, uma distinção em relação aos demais, uma espécie de voto de confiança de bonus pater familias.
- Tivemos que levar o Jaguar.
...

Já não cabemos todos no carro. Tivemos que levar o Jaguar
Isto, convenhamos, não existindo maiúsculas na linguagem falada, que imagem mental faz uma doce parola desavisada como eu?


12 comentários:

  1. Fabuloso este post. Conheço uns quantos assim...

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    1. Obrigada, Maria.
      Isto é um protótipo...

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    2. Pst pst, oh Linda Blue, ela conhece uns quantos assim, referindo-se aos posts, claro :P

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    3. Ei, Jedi, viste que respondi "Isto é um protótipo..."? Também era ao que me referia :P

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    4. Eu sou um protótipo? Olha que não :P

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    5. Mau.
      Olha, és :P

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  2. Anónimo19/4/17

    Todos conhecemos pessoas assim, cheias de publicidade na ponta da língua. Eu prefiro os que sabem que podem mas não dizem, não demonstram, não fazem questão de "aparecer".

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    1. Também eu prefiro esses, mas são tão raros...
      A vaidade cega as pessoas, e é nódoa fácil de cair num pano, por mais limpo que esteja.
      Não estou a dizer com isto que estou livre. Só não estou sistematicamente em campanha.

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  3. Anónimo19/4/17

    "em segunda mão, mas em primeiro coração"... gosto tanto. Como gosto sempre do seu estilo de escrita. Não sei se já revelou aqui no blogue (e se não o fez não tem que o fszer agora), mas tenho uma curiosidade: trabalha em jornalismo/comunicação/publicidade/ensino? Sinta-se à vontade para não responder, não levo a mal. Nem podia, se uso um pseudónimo aqui... :)
    AL

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    1. Obrigada, minha querida. Que grande gentileza :)
      Não revelei, mas posso dizer-lhe que nenhuma dessas, embora gostasse de exercer qualquer uma delas. A que me calhou obriga-me a escrever sem erros, e nem sempre é fácil. Mas escrevo muito e edito muito texto, corrijo e volto a corrigir. É isto :)

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    2. Anónimo19/4/17

      Certo :)
      AL

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