19/03/2017

The girl next door # 8

Perdi a conta a há quantos anos mora ela aqui no megatério onde eu também. Talvez uns três, contra os meus três e mais vinte sobre os dela. Vejo-a passar, quase diariamente, a passear o caniche que teve o infortúnio de ter nascido com uma raça caricata, mas que defeca abundantemente o pouco relvado que nos envolve a todos, e que ela, por qualquer motivo que me escapa, não consegue limpar. Sozinha, passada da meia-idade, gorda, as mãos ocupadas com um pouco de nada: a trela e o cigarro. Muitas vezes me questionei por que diabos me olhava com antipatia, me recusava o cumprimento de boa tarde, me virava a cara. Na minha imensa modéstia, imaginava que eram lá coisas de gaja, cenas malucas de mulher sozinha, que até queria, mas já perdeu a esperança numa família, em filhos, num corpo que nunca teve. 
Percebi ontem, quando ela me bateu à porta, munida de dois "homens" — um esquizofrénico que nunca abriu o bico por se encontrar numa fase catatónica, e outro que era igual a ela, porém careca —, para me confrontar, com péssimos modos, com o facto de eu ter o meu carro pretensamente mal estacionado na garagem do prédio. Expliquei-lhes que tinha o carro dentro dos recortes, mas a fúria dos dois era tanta que estavam cegos e, pelos vistos, também surdos: o careca apontava o dedito no ar, o catatónico cada vez mais hirto, ela gritava coisas como "Qualquer dia dou uma mocada no seu carro e estou-me a cagar", e eu esclarecia-a de que tinha acabado de cometer um crime de ameaças, e com testemunhas, por força de eu ter pelo menos três filhos maiores de idade. Entretanto, surgiu uma mulher escanzelada e eles já eram quatro — e nós apenas dois, numa clara desproporção —, a gritar que a irmã estava no seu direito, e que iam chamar a polícia e que iam dar parte e que nós havíamos de pagar bem caro o estado em que o carro da irmã se encontra e téu-téu-téu, que a irmã é uma pessoa muito civilizada, mas que isto já é demais.
E agora questiono-me se os problemas de cada um, como são estas cenas malucas de mulher sozinha, que até queria, mas já perdeu a esperança numa família, em filhos, e num corpo que nunca teve, não podem ser o detonador de um ódio dirigido a um alvo certo, cuja bomba pode explodir a todo o momento, sob um argumento qualquer, com consequências mais ou menos imprevisíveis. E de quantos ódios desta natureza não seremos todos objecto, sem sabermos, sem termos contribuído em nada para isso, a não ser pela nossa mera existência, que será coisa que — vá lá, minha senhora... —, não conseguimos controlar, a menos que façamos a vontade ao doido e nos matemos. 
Mas isto já sou eu a extrapolar, e a tentar perceber, na minha imensa modéstia, os componentes químicos do cérebro da minha vizinha.

8 comentários:

  1. Anónimo19/3/17

    É esse tipo de pessoas que aparece no Correio da Manhã quando se fala em violência. Gente descompensada e que à mínima coisinha (quase sempre sem motivo ou razão) parte para a agressão física ou verbal. Tenha cuidado.
    AL

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    1. Bem verdade. Eu temo muito mais gente descompensada, isso mesmo, os da raiva surda, do felzinho a correr na veia, do que as sem filtro como eu. E tenho mais medo pelos miúdos do que por mim.

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    2. Anónimo19/3/17

      Talvez avisar a polícia da zona não fosse descabido. Não é criar alarmismos, mas prevenir, especialmente quando se trata de gente deste calibre, é sempre o mais seguro. E a LB tem 4 filhos, percebo que se sinta inquieta.
      AL

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    3. Eu confio zero nessa protecção, AL. Casos tão graves de ameaças, às vezes já concretizadas por uma e por dez vezes, e para essas pessoas não há protecção...
      Apesar de tudo, acho que ela está mais desprotegida do que eu.

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    4. Anónimo19/3/17

      Infelizmente, é verdade. Tantos casos graves de ameaças concretizadas que acabam em tragédia. Mantenha-se atenta, e se a situação se desenvolver desagradavelmente, então terá que pensar em contactar as autoridades.
      Mas vai correr tudo pelo melhor :)
      Boa semana!

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    5. É o que pretendo fazer, já que muito mais não posso. Mas também não pretendo viver em função daquela senhora. Olho aberto e mais nada...
      Boa semana, AL. Obrigada :)

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  2. Talvez uns saquitos de plástico com H20 à socapa.Na vizinha e no caniche.A ssim com persiana meio aberta .

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    1. Hoje não percebo o que dizes... :)
      O caniche tem lá a culpa da dona que tem, coitado?

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