06/02/2016

Pedradas

Ainda dentro do carro, vi-o chegar, cambaleante. Um outro arrumador espontâneo tinha-me indicado aquele espaço (não se pode chamar lugar a um improviso no meio de um baldio). Não foi preciso ser muito perspicaz para perceber que estava completamente embriagado. Colocou-se exactamente a meio do local onde eu pretendia estacionar. Fiz-lhe sinal que saísse, pois, de outra forma, não poderia completar a manobra. Tenho consciência de que fiz um sinal absolutamente isento de indícios de impaciência ou enfado. Não por simpatia, por aquela situação sequer ma permitir, mas por mera cautela. Tinha diante de mim um homem transtornado, e a minha desvantagem relativa era absoluta.
Vamos esquecer diferenças culturais — que as há: a extrema pobreza dele, financeira e emocional, podia ser uma atenuante, e, por isso, desculpante, perdoante.
Vamos esquecer diferenças de sobriedade — evidentes — que o fragilizavam, de alguma forma, diante, ou contra, a minha posse total de capacidades mentais.
Vamos ainda esquecer que eu levava duas malas — a de sempre e a mala do portátil —, logo, estava carregada, e, por conseguinte, mais dificilmente poderia escapar-me dali, e ele não tinha nada nas mãos.
A não ser uma pedra.
Veio primeiro com duas pedras na mão — insultando, vociferando, bradando aos infernos.
Depois pegou numa pedra, para ma arremessar — apedrejar.
Faltava a moeda, que eu achei justo entregar ao arrumador.
(Noções de justiça distantes um mundo, a dele e a minha.)
Lisboa, quinta-feira, 4 da tarde, plena luz do dia.
Não fosse o arrumador ter-lhe dado a moeda da discórdia e, provavelmente, eu teria levado uma pedrada. 
Vamos ignorar que eu sou uma mulher e ele é um homem — logo, que a minha desvantagem física , por mais milénios que passem sobre mim, é uma evidência.
Vamos esquecer, porque eu já esqueci, que só guardei a sensação de que, caso fosse um homem — ou, mais dramático, fosse acompanhada por um homem —, nada disto teria acontecido.
Que a pobreza, a infelicidade, o vício e a violência que habita cada um não pode justificar as duas pedras na mão, e menos ainda a pedra na mão.
Eu já esqueci.

6 comentários:

  1. Que cena. Felizmente só lido com um arrumador que é meu amigo. Estaciono todos os dias no mesmo sítio mas só lhe dou às vezes.

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    1. A minha amiga cigana foi-se para a Roménia, ao encontro dos filhos.

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  2. Respostas
    1. Não é preciso ser muito idealista para achar que não devia ser assim...

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  3. Cenas da pior qualidade !
    É horrível .
    :(

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