15/01/2025

Eu tenho problemas com médicos # 33

E com tudo # 40

Senão, vejamos: consulta semestral de oncologia. Em vez da minha médica, sou atendida por um maçarico daqueles que ainda seguram a ponta da caneta com os dedos todos. Sorridente, nervoso, deixou logo que eu dominasse a sala, o que nem sempre joga a favor de um médico. Tive a impressão que podia mandá-lo fazer o triplo mortal encarpado à retaguarda, que ele faria. Achou logo muita piada à minha falsa surpresa: “Dra. Rita, está tão mudada!”. Perguntou-me o peso e eu recusei-me a dizer. Chega de indiscrições. Levei-lhe todos os exames que fiz ultimamente, uns por auto-recriação, outros nem por isso. Gostou de tudo menos dos vómitos. Eu também não aprecio, propriamente. Disse-lhe que já não padeço desde que tomo uma cápsula em jejum. Não se ficou, mandou-me fazer dois exames, um deles extremamente invasivo. O que vale é que estarei a dormir. Pode ser que sonhe com coisas puras. Tipo “A música no coração”, sem a parte das S.S.
Depois o delfim resolve perguntar-me se tenho diarreia. Eu, apesar de me parecer que a conversa já ia a extrapolar para a intimidade indesejada, respondi: “Sr. Dr., eu estive muito tempo presa”. E ele com os olhos a pularem pelas órbitas, aposto que a traçar mentalmente o caminho para a Psiquiatria do hospital. “Não reclusa, não detida. Ainda assim, agora sou livre”. 
Volto lá qualquer dia. Espero que a minha médica já não esteja constipada [rolling eyes].
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Fui a uma loja comprar cuecas. Agora decidi que sou alérgica aos elásticos e a tudo o que não seja algodão. Ou muito me engano, ou acabaram-se as cuecas da coboiada, sob pena de a pessoa ter que ter ao lado um frasco de Betadine. Entrei na loja onde sei que há roupa dessa sem costuras e com o tecido pretendido. Comprei umas quantas, ainda me ofereceram mais um par, e toca para casa. Na minha rua, abro a mala do carro, o saco cai-me de boca para baixo e as trezentas e cinquenta mil cuecas espalham-se pelo passeio. Devem ter-se multiplicado, porque eu metia umas no saco e espalhavam-se mais duzentas. Fora, é claro, dois sacos de víveres num braço e um saco cheio de frigideiras lá da enorme superfície, que eu, durante a batalha Linda-cuecas, nunca quis largar. Quando, finalmente, venci a coisa, passou por mim um papá com seu bebé, com um semblante extremamente preocupado e disse-me: “Bom dia”. Eu, descabelada, exausta, com cara de cueca, carregada e com a vergonha toda perdida pelas ruas da amargura, respondi: “Bom dia”. 

02/01/2025

Dormi, corri, lagartei

Passei o reveillon numa festa do maior luxo e abundância, entre peles verdadeiras de marta e arminho, perfumes daqueles que nunca mais nos saem do nariz, nem que o arranquemos, penteados armados com duas embalagens de cola laca, bâtons de tons histriónicos, gargalhadas falsas e champanhe Moët & Chandon a escorrer pelas goelas delas e deles, ou delos, ou lá como é que agora temos que dizer, senão ainda nos açoitam, ai de mim se digo que sou heterossexual, apontam-me logo a unha gigante (como é que limpam o rabo com aquelas garras?) em guinchos de "binária!", dizia eu, eram cigarrilhas, música que nunca ouvi, à meia-noite silvos de foguetes e de gente inebriada com o espelho e...

Ah, era eu de pijama e robe, aquilo tinha sido um delírio ou um pesadelo acordada, tirem-me de ambientes desses, eu bebi uma garrafa quase inteira de Champômix e fiquei logo viciada, garanto que vou tornar-me dependente daquilo, como se fosse verdade que tem mesmo maçã. Ao passar do ano, chamada via whatsapp dos filhos todos, uns longe, outros perto, mas todos fora da minha asa, gargalhadas autênticas e votos bons, de coisas doces. 

Meia-noite e trinta, a bela adormece, para só acordar ao meio-dia e meia, já do dia 1. Sento-me na cama e digo a cônjuge que vou correr. Era o prometido para o primeiro dia do ano, mas não àquela hora. Indiferente, a cidade dorme como eu até há pouco. E lá vamos, ele mais veloz, eu a meditar por que raio me meto nestas aventuras logo assim que raia o dia para mim. 

Mas corri. Estava a terminar os seis quilómetros para os quais me determinara, quando vejo, a atravessar o caminho de todos os grandes atletas como eu, uma corda muito bonita. Parei (boa desculpa) e observei. Pensei: "Oh, uma cobrinha tão comprida, mas tão magrinha!". Uma vez que a minha prioridade não era alimentá-la, mas sim salvar-lhe a vida — em claro risco, devido à velocidade a que se deslocava e à quantidade de humanos que ali passavam —, pelo que agarrei num pauzinho, a ver se ela enrolava ali a cabeça e depois eu poderia atirá-la para as relvas, ou assim. Mal lhe toco com o pau, a coisa começa a desfazer-se como um Lego mole, em pedaços de três centímetros. Só assim percebi que se tratava de uma comunidade, pelos meus cálculos com sessenta e tal elementos — não tinha menos de dois metros de comprimento — e resolvi ir-me embora, a Natureza que seguisse o seu curso e eu o meu percurso. 

Só mais tarde fui informada, de forma informal, que se tratava de uma fileira de lagartas do pinheiro, relativamente perigosas. Ainda bem que me pus à fresca. Não quero apanhar mais porras. E estava demasiado preocupada com o facto de ter dormido mais de metade do ano, até àquela hora. 


30/12/2024

Eu tenho problemas com médicos # 32

Acho que me rendi à seita da hipocondria activa: agora vejo qualquer coisinha em mim que não considero normal, e vai disto para marcar uma consulta. A oncologista não me satisfaz, porque posso queixar-me do que quer que seja, que ela me responde: "Isso passa". 

Ainda assim, foi ela que me prescreveu uma mamografia com ecografia mamária, para as quais, paradoxalmente, ia calma como uma preguiça. Não sentia nada de especial nas gémeas, a não ser mil merdas que me deixaram na coitadinha (clipes, cicatriz, uma leve dor na zona), por isso apareci no centro de exames quase aos pulinhos. Não que da vez em que se deu a descoberta sentisse alguma coisa, mas sentia. Apenas receava ser recebida por uma médica que, da vez anterior que havia feito a ecografia, me dissera: "Está tudo bem. Não quer dizer que seja sempre assim, mas desta vez está tudo bem". Só não lhe dei um pum olimpicamente cheiroso e insonoro (crime perfeito) no gabinete porque (ainda) sou uma senhora e (ainda) não faço essas coisas. Desta vez, a médica era de uma simpatia e energia contagiantes, tanto que sacudiu o frasco do gel e (não sei se a ponta estava entupida) aquilo espirrou em todas as direcções, designadamente para a minha cara e cabelo. Mas caguei (não literalmente), estava animada com a perícia da profissional, e, sobretudo, por me dizer que as tinha saudáveis.

Passados uns tempos, fui fazer um exame às miudezas, já nem sei bem porquê. Tinha feito um RX ao tórax por vomitar a dormir (sim, eu sei que é um risco, além do que não me apetece faleceri toda gregada) (desculpem lá o grafismo derivado da secreção), e tinha dado zero, como as contas que batem certo. Então, fui à médica que espreita cá para dentro e ela também não encontrou nada, nem um único bebé, a não ser um lindo órgão, o que me comunicou da seguinte maneira: "Se eu não olhasse para a sua cara, dir-lhe-ia que fosse já fazer o quinto, porque tem o útero de uma jovem". Fiquei sem perceber se aquilo era um elogio, ou se ela só trocou a ordem dos factores, que não é arbitrária: "Se eu não olhasse para o seu útero, dir-lhe-ia que fosse já fazer o quinto, porque tem a cara de uma jovem". Pronto, lá paguei o preço de um órgão qualquer e vim-me embora mais ou menos contente porque carrego um útero jovem, apesar de isso não se ver à vista desarmada (nem armada aos cucos). 

Por falar nisso, há meses que tenho dois sonhos recorrentes: num, estou grávida do quinto filho, toda a gente me diz que sou demasiado velha e não tenho saúde para o ter, mas eu persisto. O único problema que me assiste no sonho é que a minha barriga, ao contrário do que se passou com as anteriores quatro, não cresce. Mas o bebé nasce, pequenino e magrinho, e faz-me a mim a mulher mais feliz do mundo. No outro sonho, tenho as pernas cheias de pêlos e estou a preparar uma queixa (crime?) contra aquela loja que faz desaparecer a pelagem como que por magia, pim, pim, pim. Há pouco sonhei mesmo que dizia no sonho: "Estão a ver por que é que eu sonho tantas vezes que tenho pêlos nas pernas? É porque tenho!". Há que escalpelizar o significado destes sonhos. Fui à nettinha e fiquei na mesma. Para bebé, isto; para pêlos, isto

E assim acabo eu meu melhor ano desde 2021, e começo outro que, em não podendo ser ainda mais melhor, ao menos que seja igual (ao litro, que é sempre uma óptima medida). 

Um ano feliz a tutti quanti. 

 



18/12/2024

Eu tenho problemas com tudo # 39

Tinha um exame médico para fazer, para o qual, segundo a funcionária que me atendeu, devia ir com o intestino limpo, uma vez que, dessa forma, a senhora doutora vê melhor as imagens, sem nada que impeça. Perguntei: Blocos, calhaus?, rimos muito e desligámos. O exame não é intestinal nem estomacal, esta da tripa limpa é novidade, mas quero lá saber, façam-me o raio do coiso e não nos aborreçamos mutuamente.

Entro na farmácia, que frequento muito mais vezes do que gostaria, mas também é, e talvez por isso, um terreno meu, onde me sinto completamente em casa, verifico que estão quatro pessoas acercadas do balcão, duas são casal e já estão a ir-se embora, uma outra está a ser atendida e, num dos extremos, um senhor de idade, aparentemente à espera de alguém, enrolando em tubo um calendário de parede. Sou atendida na ponta oposta do balcão e digo a Jorge, pelo canto da boca: “Microlax, se faz favor”. Ele, exactamente da mesma forma, confirma: “Microlax?”. E eu, no mesmo tom: “Microlax. É que vou fazer um exame e tenho que levar os canos desentupidos, não sei porquê”. 

Nisto, o senhor que enrolava o calendário intromete-se no assunto e pergunta, alto e em excelente som, de modo a que se ouça, pelo menos, até à porta: “A senhora vai fazer um exame ao cocó?”. 

Considero que tenho muita sorte em ter um superpoder de improviso, encaixe, humor e abstracção, nomeadamente para o inesperado e o non sense. Primeiro gargalhei e imediatamente respondi, no mesmo tom: “Não senhor, não vou fazer um exame ao cocó”. Ana Teresa, aflitíssima, socorreu-me assim: “É para o teu filho mais novo, não é?”. “Não, é para o meu cão que, coitado, é muito preso. Não sei se é da trela ou das grades na janela”.