28/10/2024

Voo picado, aterragem sem espinhas

Como em outros semestres de há alguns anos para cá, lá me pus nas tamanquinhas (eufemismo de ténis), a caminho da Corrida Sempre Mulher. Há duas por ano: uma começa e acaba nos Restauradores, a outra é no Parque das Nações. Ambas têm o comprimento de quinhentos mil centímetros. Isto, dito assim, faz-me sentir uma iron woman, que é, no fundo, o que sou. Posso já não ter uma saúde de ferro, mas continuo a ter uns nervos de aço. Steel woman, eu. 

Tinha treinado numa das passadeiras do ginásio, mas não havia passado dos dois mil metros, e quase à custa de dopping. Não sei quem inventou as passadeiras, mas estimo que tropece naquela coisa e se enfie no rolamento, para sair qual folha de papel na próxima volta. (Lá estou eu a ver desenhos animados a mais). Quanto a mim, saía de lá suada que nem um reco, com ganas de cuspir o segundo pulmão, visto que o primeiro já mastigara e engolira. Convenci-me e conformei-me que não ia conseguir cumprir tanto milímetro que a prova exigia, mas consegui. Este post não é sobre a corrida, é sobre toda uma preparação física — da qual já falei — psicológica, [Vai, mulher, tu dá-lhe. Interessa é estares lá e não tropeçares] e emocional. Já uma vez falei aqui do estado sinuoso em que se encontram os passeios do Parque das Nações, por conta das raízes das árvores e da falta de vontade, com a desculpa do dinheiro, nhé-nhé-nhé, de os municípios se entenderem e arranjarem aquele pedi-paper de Dakar. Passaram vinte e seis anos sobre a construção, imaginando que ao fim de seis anos as raízes rebentaram com o cimento, façam lá as contas, que eu não estou capaz. Pois, está tudo na mesma. 

Mas eu ainda não ia preocupada com a crueldade do piso, pois ia apenas a dirigir-me ao ponto de partida. Calcorreava, então, a passadeira de ripas que tem as colunas que suportam os mastros das bandeiras não sei de onde, quando meu téni se encaixou na perfeição numa das imperfeições de uma ripa qualquer, tropecei olimpicamente, senti que houve ali um milionésimo centésimo de segundo em que os meus dois pés estiveram no ar em simultâneo [I believe I can fly], tudo num ralenti muito rápido, olhei para a frente e avistei de muito perto um dos postes e, pelos meus cálculos, apercebi-me de que ia marrar de frente com ele, ainda meditei [O que é que lhe dou? A testa, o nariz ou os dentes? A testa, assim como assim já cá cantam duas costuras, feitas no espaço de seis meses, de quando era uma petiza distraída], mas subitamente decidi que ia fazer do inimigo meu amiguinho, estendi os dois braços e zás, abracei-o com toda a comoção que o momento exigia. Fiquei de pé, agarrada ao poste, impecável, sem uma dor, sem uma unha lascada. Pensei em fazer uma dancinha do varão ali mesmo, mas estava apressada, tenho zero forças nos braços e, em bom rigor, sei lá eu fazer essas excentricidades.

Tenho quase a certeza de que esta grande vitória na luta entre mim e a gravidade contribuiu em muito para a pequena glória de ter ultrapassado a meta em vários minutos, mais ou menos os mesmos que fazia antes de ter adoecido. Está tudo na cabeça? Sim, e nas pernas, ide lá plantar anonas, que aquilo custa um nico. 

 

10/10/2024

Alegria de estar viva

Talvez a explicação para o estado de euforia com que entrei hoje no cabeleireiro seja a de que aquele espaço me acompanhou desde o início, através das bondosas mãos da Sandra e depois da Jaqueline, quando decidi fazer um tratamento para que o meu cabelo nascesse forte e saudável, que é só o que se deseja nos tempos que antecedem um nascimento. Reconheço que tagarelei em excesso, que ia dominada pela alegria de estar viva e poder pintar o meu cabelo, já comprido. À minha direita estava uma senhora que sorria, à minha esquerda uma outra, mais velha, a quem a minha Sandra punha quadrados de papel de alumínio e pintava com uma tinta azul. Reparei nos ténis, iguais a uns que também tenho, nas meias de compressão elástica, na saia desinteressante, na maquilhagem disparatada, nas bochechas sumidas ossos adentro. A expressão era dura e incomodada, talvez porque estava verdadeiramente contrariada com o meu excesso. Tinha insistido em ler a última Hola!, que ainda não estava disponível no cabeleireiro. E eu, num passo de mágica gaffe, disse que não percebia nada da vida daquelas gentes. Não foi com desdém, apenas quis evitar que me oferecessem revistas dessas, por considerá-las um assunto que não domino. Também não leio revistas de Física Quântica, já agora. Até que, de repente, ela me estende três dessas revistas como uma espada ameaçadora e pergunta: “Quer?”. Aquilo amedrontou-me, assim à queima-roupa. Disse que sim e sentei-as no colo. Percebi que era uma forma de me mandar calar como se faz às crianças: toma lá a chucha. 
Depois a minha Sandra falou no dia em que teve que rapar o meu cabelo. “Um dia de tempestade horrível, era mesmo um dia de pesadelo. Lembra-se do que chovia?”. Lembro-me do que chovia, a tempestade fez parte da tormenta dela. “Lembro-me do que chovia, lá fora e nos seus olhos”. “É verdade, eu a chorar e ela ali, impecável, como se nada fosse”, disse para a velha d’ A Casinha de Chocolate. Foi um amansar de expressão instantâneo. Sorriu-me. Fez-se humana. Só por causa de um cancro que nem lhe dizia respeito.
Eu, feliz, abracei Sandra, Jaqueline e Andreia, “Adeus, minha querida”, “Adeus, meu amor”, “Adeus, linda”. E saí para o ar fresco, sem chuva nem tempestades.

03/10/2024

Em primeiro lugar

Pela terceira vez voltamos a Sul já no Outono, as duas vibrantes, gloriosas e após penosa contagem decrescente, por sabermos que vamos encontrar céu e sol e mar e areia, num vestígio que lembra ainda o Verão. Deixamos para trás homens, trabalhos, casas, supermercados e ginásios, e mais tudo, notícias mundiais e mundanas, unhas impecáveis, maquilhagem e “o que é que hei-de vestir hoje?”. 

Almoçamos nos restaurantes da praia, e é ali perto que está um gato ao sol, dormindo ou o que seja que os gatos fazem quando estão deitados de olhos fechados, tamanha é a rapidez com que se levantam, totalmente despertos, quando pressentem o perigo. Diz-me ela que ele está muito magoado na cara e lá vou eu, de um salto, interrompendo a refeição que ainda não comecei. A mancha branca e laranja aninha-se ao murete do canteiro, chego-lhe perto, faço-lhe festas na testa em direcção ao nariz e ele regala-se. Digo-lhe “indecências” em gatês, abrando a mão e ele ergue a cabeça, miando. Pede mais. Dou-lhe mais uns mimos, enquanto observo as feridas: um golpe fundo na cana do nariz, vestígios de sangue seco nas pálpebras, que praticamente não o deixam abrir os olhos. Pergunto por ali de quem é o gato, “Os gatos aqui não são de ninguém”. Faço uma lista mental do que levar no dia seguinte: pomada antibiótica, mas que exige que lhe ponha também um abat-jour, sob pena de ele limpar tudo com a pata. Alguém que lhe dê uma injecção de antibiótico, mas como é que a compro? Posso dar-lha eu, porém preciso de assegurar que outra pessoa não tem a mesma ideia. Faço um cartaz a pedir um veterinário pro bono? Pode nunca aparecer. Ligo para a Câmara a pedir ajuda? Boa ideia, se não for para o enfiarem num gatil.

No dia seguinte, confirmo a presença do gato no mesmo local, mas reparo em tacinhas de comida e água à porta de uma das lojas. Pergunto à senhora que me atende se o gato é dela. É como se fosse, trata dele. Peço-lhe que o leve ao veterinário, caso contrário ele morre com a infecção. Que não, que de vez em quando são os cães, é um vidro, são as folhas secas dos cactos. Mas depois passa. Que ele está velhote, mas é muito bem tratado. Tem as vacinas em dia e tudo. 

Não posso mudar o mundo. Acerco-me do gato, ele abre os olhos e vejo um azul e um âmbar. São dois corais rodeados de sangue. Ouço a voz da minha terapeuta, “Tem que colocar-se em primeiro lugar, o seu papel de cuidadora já terminou”, e penso que não quero estar em lugar nenhum, quero apenas sarar as feridas que puder sarar.


26/09/2024

Afinal ela fala tanto

O silêncio dela durou exactamente três meses e dez dias. Hoje, enquanto fazia duas malas — visto que vou correr o país de Norte a Sul no próximo domingo, rali que leva o tiro de partida amanhã (eu sei que não há tiros nos ralis, era uma metáfora) —, encontrei o anel que procurei durante uma infinidade de meses. Aquelas situações em que às tantas já procuramos onde é impossível estar — no armário dos medicamentos, debaixo de uma cómoda que tem poucos centímetros de altura entre o chão e o início da coisa (teve que ser com uma régua de um metro e meio, que, ainda que me espalmasse contra o chão, não conseguia ver para lá de onde o sol se põe), em cima do frigorífico, dentro das minhas narinas, na gaveta dos collants, eu sei lá, menina — e nada de anel. Tinha-a avisado que o anel ia aparecer, nem que eu tivesse que meter uma retroescavadora dentro do lar e arrebentar cu parquê e cus azulejos. Sacudiu os ombros, pois andava a amarrar o bode, e eu virei-me para o lado que durmo melhor. Claro que a culpa ia morrendo solteira, como sempre, e então, “Terá sido uma das gatas?”, que são quem tem as costas mais largas do lar, tipo Schwarzenegger.
Normalmente, quando ando à pesca de alguma coisa, primeiro vejo onde sei que ela estava, depois pego num objecto com o mesmo peso e tamanho, atiro ao chão e verifico a área que ele alcança. Se não encontro, parto para os locais improváveis e só depois os prováveis. A experiência diz-me que as distracções nos levam a deixar as coisas em lugares que nem o diabo acredita. Esgotei todos e nada de anel. Encontrei-o hoje, numa bolsinha onde já tinha procurado vinte vezes. Assim que lhe disse, a mulher desatou a língua há muito presa (pouco tempo para mim, o silêncio é-me tão caro que me arruino) e contou-me a história das unhas dos pés dela, que eu já sabia de trás para a frente. Apeteceu-me dizer: “Estava a gozar, o anel continua desaparecido. Mas também posso contar a história de um furúnculo que vi uma vez numa pessoa”. Chata.