01/09/2015

Como é puta a puta da vida

Parecia um sibilo, um apito agudo, o estampido de uma bala, o estrépito de um desmoronamento. Ouviu-se cá em casa o nome Carolina Pequenina como se fosse um grito, mas ninguém gritou. Era um soluço, vinha da alma da Mimi — Carolina Pequenina... —, e então fizemos um abraço a seis, doze braços, que eram muitos mais, porque nos abraços maiores há muito mais do que só dois braços por pessoa. Um cão na estrada, o carro que levava a Carolina Pequenina levou-a daqui e agora ninguém sabe para onde ela foi. Os pais, sem mais nenhum filho, reconheceram-na na antecâmara da tortura maior que resta quando já não há mais nada. Nem o consolo de terem um anjo só seu, quem é que quer um anjo em vez de uma filha pequenina e magrinha e delicada como uma peça de porcelana?, e daí e de tudo isso o acrescento ao nome, Pequenina — não para a distinguir de outra Carolina, que também há no bando de pássaros que foi agora desapossado dela, mas pelo tamanho que ela teve enquanto cá esteve, miniatura de gente grande. Nunca ouvi ninguém referir-se-lhe de outro modo que não fosse assim. Pequenina seria o apelido natural de todos os filhos que a Carolina viesse a ter, tivesse ela tido tempo. Mas fosse ela maior, e a dimensão da tragédia não seria menor. 

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Hoje estou zangada contigo. Não percebo nem aceito o Teu dedo caprichoso, que põe um cão na estrada, tomba uma carrinha com oito pessoas lá dentro e escolhe uma menina, aleatoriamente. E escolhe um pai, louco de amores pela filha — Carolina, o amor cego do pai dela, sempre ouvi aos miúdos —, e uma mãe (oh, pá, a sério que Tu sabes o que é ser mãe? Não viste a Tua, no calvário?), para sofrerem a pena maior, que nem os Homens que Tu criaste conseguiram criar tão cruel. Não preciso que me protejas, que me vejas com bons olhos — assume-me como a pior das criaturas, mas deixa-me em paz. — De Ti, preciso apenas da promessa de que, quando esse teu dedo injusto calhar num dos meus, me levas uma perna, me levas a outra, me levas os braços, me levas os olhos. Podes também ficar com o cérebro. E o coração, já agora. Quando não tiveres mais nada para me levar, leva-me a vida, mas por amor — por Amor — de Deus — que ironia tão amarga —, não me leves as minhas vidas.

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E pára lá de te rodeares de mais anjos.
Devolve-a.
É pedir muito?
Devolve-a, porra!


6 comentários:

  1. como, com palavras simples, nem uma a mais, nem uma a menos, se diz tudo. parabéns!

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    1. Não tivesse eu que as ter escrito...
      Obrigada, Ana.

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  2. Ele, forte e eterno, pode jogar à roleta, porque sabe que quem perde, sempre, são os seres frágeis; perecíveis.

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  3. Também n consigo compreender tamanha crueldade...

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    1. Tolerância zero, descompreensão absoluta.

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