16/04/2021

Profilaticamente isolada

Por razões não sei de que foro, que, exactamente por essa razão, não cabe aqui explicar — ficaria longo, ou então descabido, ou simplesmente não me apetece explicar (ah, a amarga liberdade, que gradualmente se vai perdendo por este deserto afora) —, encontro-me física e espiritualmente retirada da realidade (seja lá o que isso for nos dias que correm por estes dias) que é o mundo (oh) lá fora, ou seja, a rua. Assim, estou sem a matraca que me faz a lide doméstica, mal ou bem. Tenho, por esse motivo, aprendido algumas coisas, ou melhor, tenho relembrado que elas são como são, como afirma o povo quando não tem mais nada para dizer (bastas vezes), utilizando jargões que mais não são do que bengalas para o coxear do discurso desconexo. A saber: As minhas casas de banho têm sido lavadas com limpa-vidros, o que redescobri agora, já que já havia chegado a essa conclusão aquando da quarentena, nos idos 2020. Mal ela regressou ao trabalho, apliquei-lhe uma descasca de que não tinha memória nos últimos vinte e dois anos (entretanto, perfez vinte e três “de casa”, stricto sensu, as aspas aqui só vêm compor este ramalhete em jeito de rosário de amarguras), o que, aparente e realmente de nada me valeu, a não ser ter-lhe valido a ela um par de lágrimas (matematicamente, uma por cada olho, se tiver os dois sacos a funcionar em perfeito paralelo), que eu, halleluja!, não vi, mas recordo ter vagamente escutado umas fungadelas — que também podem ter derivado de alguma alergia (vai-se a ver, ao líquido para os vidros com que me higieniza as retretes, mas não os vidros, a avaliar pelo miserável e opaco estado a que mos deixa chegar), mas que eu, cruel, porém justa, olimpicamente ignorei. Quando a pessoa regressar, lá terei que repetir todos os blás da outra vez, ou, em alternativa, sujeitar-me ao diálogo que já antevejo, ou anteouço:

- A Sandra voltou a limpar as casas de banho com o líquido para os vidros. Diga-me porquê.

(Eu, sempre em busca do conhecimento; eu, antropóloga do serviço doméstico; eu, aplicando psicologia ao nível do uso de detergentes; eu, passada da marmita por dentro, mas por fora uma serena senhora, a evitar que me salte a mola e lhe solte os cães.)

Respostas possíveis:

- Aaaah...

- Eu já lhe tinha dito que precisava de um spray para as casas de banho, mas comprou-me um limpa-vidros e estou a usá-lo até ter o frasco vazio para poder meter lá a lixívia.

E é tudo por hoje.

Se me sinto mais leve? Não. Não tenho comido mais do que o costume, mas no próximo domingo não irei correr, e isso sim, pode fazer toda a diferença (mental). Tenho que voltar a dançar.

https://m.youtube.com/watch?v=N2oiBSL_D80

08/04/2021

8 anos

Se não me falha a matemática, já que me falhou a memória e, por conseguinte, a data, aqui o coiso completou ontem oito anos. Anda parado, é certo, mas, ainda assim, vale tudo, inclusivamente tirar olhos, nesta contagem crescente, que é como a daquelas relações à distância, em que tudo funciona bem talvez por isso mesmo, e os meses e anos se vão sucedendo e contabilizando em bodas e outras vitórias semelhantes. 

Daqui a dois anos menos um dia, portanto, perfazemos bodas de estanho. Por enquanto, limitamo-nos a entrar, mais ou menos gloriosamente, na primeira adolescência. 

Imagino que nos desejem mais oito destes. Eu ainda não sei se desejo tanta vida para isto.

[Muito obrigada na mesma a quem ainda aqui passa e fica e volta e torna. Sois valentes.]

05/04/2021

Hão-de chamar-me mentirosa a vários níveis. Pois que arrisco

Confinada e de ginásio fechado, desenvolvi as minhas corridas para patamares nunca antes vistos e ou alcançados. Detentora do melhor par de ténis de que há memória no meu cérebro - Nike Pegasus* cor-de-rosinha, e este último pormenor pode ser, de todos, o mais importante, pois que até a cor pode estar a contribuir para a minha actual aerodinâmica - e da calça elástica mais modeladora em que algum dia espremi os chispes - Tezenis* -, de metro a metro fui acrescentando, domingo após domingo, e eis que ontem perfiz os sete vírgula cento e noventa quilómetros. Sem grande esforço, sem maior cansaço do que aos cinco que constituíram a minha meta máxima nos últimos anos. É claro que, antes dos sete e depois dos cinco passei pelos seis. O segredo são os ténis do meu coração, as calças da minha vida e uma granda pastilha de magnésio no fim, uma vez que já não vou para nova e não tenho rigorosamente tempo para sofrer de dores a seguir e nos dias seguintes. Essencial ainda, um bom aquecimento e prolongados alongamentos, dois espectáculos que forneço semanalmente à vizinhança ali no espaço de cinquenta e cinco minutos. 

Tenho agora como meta os dez quilómetros de uma corrida que tem sido sistematicamente adiada à cause du virus.

Diz que o pessoal que pratica corridas se flatula alegremente, embora desconheça com que cadência, ou seja, de quantos em quantos metros lhes ocorre, ou se se trata de um sistema aleatório. É que - e também parece mentira - eu não. Não, não mesmo, nem uma vezinha para amostra, um criminho solitário quando não vai ninguém a passar, zero, neruscas de piripitibas. Começo e acabo a tarefa seca e limpa nesse campo, nem pela cabeça me passam os ares, quanto mais lá por baixo. Em compensação, arroto bastante, embora de forma não sonora, lamento. Ontem contei cinco, o que não chega sequer a um por quilómetro. Por mais que intervale entre o pequeno-almoço e o início da corrida, ali ao fim dos primeiros cem metros lá me vem a acidez, mas que pode ser derivadas de já ir irritada com os transeuntes domingueiros, que parecem todos vir ter comigo para me pedir uma informação, tamanha é a incapacidade que demonstram em desviar-se da minha rota. Depois dou ali mais quatro arrotitos e está a corrida terminada. 

Ou seja, funciono a gás, como todos os corredores de maratona, mas a mim saem-me pelo sótão e não pela cave, como diz o povo na sua imensa sabedoria. 


*NMPPI


01/04/2021

Uma acção de (desin)formação, se faz favor.

Andava eu há anos a gemer por uma máquina de secar a roupa, farta de consultar o oráculo da meteorologia, de estender roupa dentro de casa, nos radiadores, na varanda tapada com plásticos, fora as idas à lavandaria self-service com sacos de roupa molhada e depois a seca da espera pela secagem, e a despesa, e eu sei lá que mais ginásticas, cálculos matemáticos, previsões atmosféricas e outras maçadas que tais, até que cônjuge cedeu aos meus rogos e lá fomos à loja comprar a coisa.

Por uma questão de logística, aquela prima direita da lógica, optámos por uma máquina que lavasse e secasse, ocupando esta, com a dupla função, o espaço de uma só.

Escolhi-a criteriosamente, garanto que não olhei a despesa, informei-me capazmente sobre programas, modus operandi, capacidade, mil merdas. E mandei entregar em casa o computador hi-tec (aitéc) da lavagem da traparia, um monstro sagrado todo electrónico, cuba para oito quilos de roupa a lavar, cinco a secar, algo que andaria muito próximo das necessidades diárias desta gente que me habita o lar e veste e despe, todo o santo ano, entre duas e três mudas de roupa a cada sol a sol, parecem recém-nascidos, meus ricos meninos.

Instalada a dita, se pô-la a lavar-me as vestes não se revelou um mistério, já secar foi qualquer coisa de transcendente. A cada programa que experimentei iniciar, a bicha ficava ali a raciocinar um minuto, pesando a roupa com muito vagar, e depois sentenciava que ia demorar três horas. Ou então quatro. Atónita, muni-me do raio do manual, li-o todo na secção Português, mas, para além de uma tabelinha cheia de bolinhas, não consegui entender como é que é possível secar roupa na Sra. D. Máquina de Lavar e Secar de Almoronha e Menezes sem levar metade de um dia, ou seja, coisa que o Sol, aquele astro, faria num fósforo caso fosse Verão. Liguei então para o vendedor, que me deu uma explicação mais ou menos confusa acerca do funcionamento da geringonça, tendo-me deixado, lá está, ainda mais baralhada: que ela aponta quatro horas no início do programa, mas que, à medida que vai "sentindo" a roupa a ficar seca, acerta esse tempo, diminuindo-o. Detentora desta valiosíssima informação, pus a coisa a trabalhar, ela que ia levar três horas e meia, eu que está bem, botão do on, e levou-me três horas e meia, nem menos um segundo, a secar ao ponto de quase queimar a minha rica roupa. Saiu de lá tesa como um carapau, quentíssima, impraticável para o ferro. 

Finalmente, pus-me a caminho da loja, pedi formação sobre o imbróglio ao vendedor, o senhor sentou-se ao computador, óculos na ponta do nariz, todo franzido, demorou uma eternidade para abrir um PDF que foi buscar à nettinha, e que continha o bendito manual de instruções, mostrou-me a tabelinha das bolinhas de que sou possuidora em papel, confessou a sua incapacidade para percebê-la e prometeu-me um técnico da marca no lar para um destes dias. (Capaz de me aparecer no Verão.) Desolada, mas não desistente, abandonei. 

Ao menos, a querida monstra lava-me a roupa primorosamente.