30/06/2016

LB também sabe falar sobre futesfera # 2

Estamos nas meias!


Intervalos

Cheguei a um limite, e sinto-o claramente. Passei grande parte da manhã a assistir a uma espécie de coaching, "filosofia" na qual não acredito. Falam-me de empenho, vontade, acreditar, vencer, usam uma infeliz metáfora que diz "Picas a pedra enquanto acreditas que de lá vais extrair ouro. No momento em que deixas de acreditar, deixas de picar a pedra e nunca encontrarás o ouro". Logo a mim, que me distraio e divago e o meu pensamento toma outros rumos com uma facilidade  — literalmente — estonteante. A ideia de ouro debaixo de pedras só pode ter saído da cabeça de alguém que nunca parou para pensar no que diz. Diamantes, sim; já ouro...
Saio da sala, chego à janela imensa, preciso de respirar e tomar uma decisão definitiva. Estou a dizer adeus, e esse processo leva muito tempo e dá muito trabalho, em se tratando de mim. No parapeito, vejo o corpo de um passarinho que caiu do ninho e ali ficou, ainda sem penas, já seco de tantos dias de morte. Vida breve, intervalo eterno. Lembro-me de quantas crianças, nos últimos meses, foram vítimas das suas próprias mães e a mistura de assuntos feita pelas minhas associações de ideias consegue provocar-me espanto. 
Faço meia volta sobre mim mesma e vejo uma mãe, muito jovem, trazendo o seu filhinho pelas duas mãos, ensaiando, a quatro pés, os primeiros passos dele. Vejo-me, por quatro vezes, a fazê-lo também, e mato um pouco a saudade que me mata. Digo-lhe: "Que lindo e que precoce, vai andar aos dez meses", e ela confirma, surpreendida, que ele tem, efectivamente, dez meses. Gabo-lhe os quatro dentinhos e a cor dos olhos, quase verdes. A criança vibra de alegria, agita os bracinhos cor-de-rosa, faz tenção de vir para o meu colo. Retraio a vontade, não me parece justo interromper a felicidade daqueles dois. 
A vida continua, sem intervalos.

Estou a pensar em comercializar o meu ar

Primeiro, torno-me uma blogger a sério. Depois, compro umas latas. A seguir, dimano os meus ares para dentro das latas, não esquecendo o ar de parva e o ar de chica-esperta. 
Ares, toda a espécie de ares, vale tudo (menos esses que estão a pensar, mas só porque eu sou uma senhora e não faço essas coisas; se não, até esses iam na lata).

29/06/2016

Numa escala de zero a dez, quão estranho é o teu gato? # 7

Não é um gato escaldado. Mas não tem medo de água fria. 
Deita-se no bidé, tapa o ralo com o rabo e a cauda, e fica a refrescar-se, às vezes até ter um terço do corpo molhado. Depois bebe água, directamente da torneira, e sai em derrapagem e slalom (contra tudo). 

(E sim, temos bidé, aquela invenção française do plus chic que há, et honi soit qui mal y pense.)

Há um padrão, um denominador comum, um sinal que Sir Euromilhões te anda a dar

Nunca escolho os números. Ponho sempre a maquineta a pensar por mim. Sai-me sempre qualquer coisinha. Sempre. 


28/06/2016

Isto, das quatro, uma:

ou ninguém me lê;
ou ninguém me lê com atenção;
ou está-se tudo a defecar;
ou ficou tudo a rir como o Amorzinho, a um cantinho da sala obscura, e foi bom enquanto durou.
 

E não, não era uma gralha: repeti-o uns metros adiante.
Escrevi ciso, em vez de siso.
Eram 13:11 da tarde quando o publiquei, e só dei pelo engano aí pelas 18:30. Estava na praia, tinha a cabeça ao sol, e senti o cerebelo a fritar, as meninges a encolher, o crânio a rachar, os mióis a congelar. Brain freeze.
E estava sem rede, pelo menos a suficiente para poder corrigir. Não vou aqui contar o que sofri e suei — porque eu tenho uma dignidade a defender — até ter um nico de rede que me salvasse da queda em Cristo de uma grande dama.

Por acaso, o post foi escrito pela outra, que tem a PDM.
Mas a outra somos eu.
Bem feita, grammar nazi, ora pega lá do teu veneno. É bom? 
É azul, ao menos isso.
(Vá, e poupem-me ao errare humanum est — e mais ainda à sua variante herrar é umano —, que eu respondo que não é por acaso que agora é tarde e o latim é morto como a Inês, pelo que errar é desumano, a avaliar pelo choque que sofri ao nível das têmporas naquele dia.)
Obrigadinha, sim?

Next step: cinema sozinha

Andava para fazer isto há um ano, com o necessário intervalo da duração do Outono e do Inverno: ir à praia sozinha. Done.
Foi meter no boi, coração aos pulinhos de xitex e daquele medo bom, chegar, espetar o guarda-sol, besuntar de protector, estender a toalha e zarpar como um barco livre em direcção ao mar. Não custou nada, não doeu coisa nenhuma, não perdi pedaço. (Antes tivesse perdido, tirava aqui umas febras de locais cirurgicamente determinados.) Foram duas horas e meia de liberdade total, eu e eu, as duas, together, in perfect harmony, vamos ao banho?, vamos —, vamos mergulhar naquela onda? não, na seguinte —, vamos para o sol?, yes, ma'am —, vamos virar a franga para baixo?, oui, madame. Um luxo, pois eu falo-me em estrangeiro quando estamos só as duas.
(Nem música levei, já que a melhor música, nestas circunstâncias, é a do mar ao fundo e dos vizinhos ao lado, e toda a espécie de assuntos esdrúxulos e comportamentos graves que discutem e adoptam só por se encontrarem em pêlo.)
Claro que houve senãos: gente a mais; tatuagens que me poluem as vistas; carne em abundância; povo que maltrata crianças; um senhor que, de pança ao léu, cornetto numa mão e cadeira de praia na outra, pretendeu espetar o chapéu tão perto de mim que, caso esticasse as pernas, bateria com os pés lá no mastro dele, passe a expressão e chiu. Foi fazer aquela cara mas-é-que-nem-penses, esticar as maravilhosas e vê-lo marchar mais a pança e a esposa para outras sombras.
Cômputo geral: positivo. E vou repetir.

27/06/2016

Juro que não sei o que é que se passa ao nível da celeuma com os animais

Estive todo o dia longe destas lides, e liguei-me à máquina neste momento. Mas tenho o feed, que me diz que algo se passa. Não li notícias, não tenho facebook, estou fora da caixa, da bolha e, quem sabe, da realidade.
Mas estava a pensar em mim e depois lembrei-me de mim. 
Há quatro dias atrás, estava eu no Algarve, num hotel soberbo, colado a um extenso campo de relva e vegetação vária. Tudo muito verde.
Deu-se que, antes de jantar, me deu aquela retraça que dá aos miúdos quando vêm da night. A mim, deu-me antes. Tinha na malita um pacote de frutos secos, onde se incluíam passas de uva. Comi, comi, comi, e depois fui pôr-me bela para o jantar e deixei alguns restos em cima da cama. Quando voltei, eram 3:30 da manhã, e ia mergulhar de cabeça na cama quando me apercebi de um formigueiro, composto se não por centenas, pelo menos, dezenas de formigas, em cima da minha alva cama, rondando o pacote, adentrando nele. 
Ora, eu, morta e podre, pés a latejar de tanto dançar, sozinha no quarto, era assassinar aquilo tudo, que ninguém ia ficar a saber. Crime perfeito.
Não fora ser parva.
Peguei no pacote, cheio de formigas, e meti-o no lavatório. Tive o cuidado de fechar o ralo, para que não houvesse um acidente com alguma que caísse por lá abaixo. Sacudi, cuidadosamente, as imensas formigas que ficaram na cama, atirando-as para o chão. (São invertebrados, não sofrem fractura da coluna.) Voltei ao lavatório e meti o saco dos frutos secos no cesto dos papeis, destapado (para poderem respirar ou sair dali, se quisessem). E depois, tirei as formigas que ainda estavam no lavatório, quase uma a uma, com papel higiénico, e juntei-as aos frutos secos e às outras, que já estavam no cesto.
E fui dormir, muito descansada.


Tens o que mereces

(Disclaimer para afirmar, antes de mais nada, que a profissão de vendedor de praia é das que mais admiro: aguentar areia a 50 graus, quantas vezes, sol na cabeça a 40 graus, quantas vezes, e as pernas, invariavelmente cravejadas de varizes, não é para todos. Mas também já a vi ser exercida com alegria e empenho e sei que, no limite, ninguém é obrigado a estar onde não quer estar, por grandiosa que seja a miséria.)
~
Estava a pessoa muito bem refastelada ao sol, que isto não pode ser só emagrecer, há que compensar as perdas — contabilisticamente falando —, e começa-se a ouvir um apito agudo pelo areal afora, qual feedback quando o emissor e o receptor estão demasiado próximos e nos entra um som estridente pelos ouvidos adentro. A acompanhar o apito, um pregão de Olá-fresquinho em falsete uns quantos decibéis acima do suportável, uma mulher de fartas carnes e legging de padrão leopardo malhado de azul, arrastando um carro de duas rodas com uma pequena arca de gelados e uma caixa de bolos em cima. Parou demasiado perto de nós, continuou aos gritos — mesmo quando estava a atender clientes —, pegou no telemóvel, gritou para o bocal e para que toda a praia tomasse conhecimento "Está bandeira amarela!", desligou o aparelho, resmungou alto e bom som, "Vou mas é molhar os pés, cara***, fo**-se!", e saiu em direcção ao mar.
Tem piada, pensei eu cá assim para com o meu biquíni, cá está mais uma que trata tudo a coice e, naturalmente, não só espera que a tratem com muito carinho, como também se surpreende genuinamente por que é que não.

26/06/2016

É de vidro que a saudade é feita

Foi mãe e foi avó, e também foi tia porque o era, e foi, principalmente, o colo que faltou, quando faltou, e também braços — magrinhos, mas que abraçavam um abraço gordo que nos aninhava no peito farto —, foi guia que nos pôs a rezar e nos ensinou a rezar forte, e nos salvou o pai quando, no coma, nos fez pedir ao Pai, à noite, antes de deitar, joelhos no chão do quarto, as mãos muito juntas, Pai, salva-me o pai, que ainda hoje tenho a certeza que foram as preces, rezadas até doerem os joelhos, até ao adormecimento com a cabeça na cama, e depois, já deitada, pela madrugada fora, não foram os médicos, não foram, não, foi a nossa Titi, que nos disse como fazer. 
Deu-nos também, de mão beijada (tanto que deveria ter beijado aquelas mãos, de onde saía tudo perfeito), os dons de mãos que eram seus: a coser, a bordar, a fazer bolos, a cozinhar. E estávamos ontem a lembrá-la e eu vi-lhe as contas ficarem de vidro, porque é de vidro que a saudade é feita — frágil e sólida, delicada e resistente, suave e poderosa.
Tens máquina de costura?, perguntei-lhe.
Claro que tenho, respondeu-me ela.
Claro que temos — a Titi deu.

Quando o mundo avança sem dentes

Ela andou galinha: ainda faltavam dez dias para fazer dez meses quando começou a andar, e o primeiro dente só veio um mês depois.
Vai de Erasmus em Setembro, e os sisos nascem-lhe e magoam-na.
- Se calhar, tens que arrancar os sisos antes de ires embora.
- Sim, convém. Não vou andar lá com dores ou à procura de um dentista.
- Faz parte do teu destino: todos os teus grandes gritos de Ipiranga são dados contigo desdentada.

25/06/2016

LB também sabe falar sobre futesfera

Estamos nos quartos!

(Imagem furtada da nettinha)

colo

Já foi há uma semana, mas ainda dói. O tempo não é médico, nem sempre sara, às vezes parece a mezinha infalível que quase nos mata da cura.
Fui sozinha, à procura de colo, a querer brincar às filhas únicas que nunca fui. Estava mesmo sedenta e faminta, e pareceu-me a ocasião perfeita, não fora estar tudo tão imperfeito que só eu não vi antes de ver à chegada.
Encontrei o meu colo indisponível e perdido, e então dei o meu, perdida que fiquei de o ver assim.
A vida é demasiado estúpida quando se põe com ironias e sem metáforas.
Às vezes, apetece-me fumar um triste cigarro, tamanha é a sede, tão grande é a fome. 
Era capaz de não me matar tão lentamente.



24/06/2016

O meu Brexit

Mas este é o Brexit que tenho para apresentar à blogobola, como tentativa de libertação pessoal.
Faz amanhã anos.
(Ricardo, nunca te esqueci.)


(post praticamente redigido por uma pessoa que fui eu que fiz, já que eu não tenho caco suficiente para tanto.)

Diário de fora e de dentro de bordo

No primeiro dia, chegámos atrasados, por culpas do GPS, aquela coisa que nos induz. Já não pude enfiar-me no charco, dado que havia um jogo, olhem, que lamento nem saber o resultado, mas isto foi tudo seguido e um grande stress. O calor assassinava e assava uma pessoa, não necessariamente por esta ordem.
Dali fui levada para um barco, a dar uma volta. Já tinha conseguido não enjoar no carro, pelo que esperava, ao menos, enjoar no mar. Mas acho que estou a perder qualidades. Apesar dessa constatação, foi muito giro: há muitos anos que não andava de montanha russa (o mais próximo que estive disso foi ter andado na roda gigante há uns meses, em Cascais, que eu também não me meto em qualquer feira popular), e aquela saída do catamarã até entrar no mar a sério foi muito entusiasmante para quem gosta de testar os limites do seu ouvido interno. Comi que nem uma lontra e não bebi álcool (mais porque me fui enfiar na parte de cima — que tem um nome, mas agora não me ocorre — armada em Kate Winslet, e as bebidas serviam-se lá em baixo). Ainda imbuída do espírito da nação, fotografei a bandeira do pavilhão (isso sei porque estudei Marítimo, e ficou-me). 


Também fotografei o pôr do sol, porque sou um nico parola e não resisto. Fica-me mais barato do que comprar um postal ilustrado, e acho que é isso que me move. 
O regresso foi ainda mais tortuoso, mas eu estava empenhada em autodesiludir-me, e cheguei a terra impecável, fora aquilo de a maresia de esmerdar o cabelo e ter ficado a parecer não sei o quê. Antes ter chamado o Gregório, mas não sou eu que escolho.


No segundo dia, mandaram-me jogar um jogo/desporto, que dava pelo nome de futegolf, e que se processava num campo de golf, passe o pleonasmo. Deram-me o volante de um carrinho daqueles de levar tacos e bolas, e eu colidi imediatamente com o veículo da frente, à estonteante velocidade de seis à hora, ou assim. Só foi chato pela guinchadeira que provoquei, uma vez que se deu ali um choque em cadeia, por o meu carro ser o último e ter alguns dez à frente, em comboinho.
Quando fui jogar com a equipa que me calhou na rifa e mais quatro adversárias, já fazia tanto calor e o campo era tão grande, que as convenci a fazer batota e a meter as bolas nos buracos (chiu), aldrabando a pontuação toda. Ainda agora estou para perceber como é que elas alinharam nisto sem pestanejar, uma vez que acabaram por nos oferecer o primeiro lugar do torneio todo. Até trouxe uma medalha, que pesa cornos, e não posso usar ao pescoço no dia-a-dia, sob pena de ficar marreca ou deslocar os discos.


Depois de almoço, fui sujeita a um treino de flash mob, em que as minhas sugestões de coreografia foram todas aceites com entusiasmo, mas só enquanto fui eu a dançá-las, já que, de seguida, isso não dá, que não conseguimos decorar o esquema em tão pouco tempo, ora batatinhas, ficou uma coreografia que até uma múmia do Egipto era capaz de dançar com mais ritmo. Enfim, sou uma incompreendida em todos os sectores, agro-pecuário incluído.

Tive bastante pena do animal, e rezei para que largasse coice em todas as direcções menos na minha, mas Alá não esteve comigo, para variar.
Após uma breve passagem pela piscina, que me parecia mais uma miragem do que um tanque, fui mascarar-me de marroquina, já que ia para uma festa temática subordinada ao tema. Vi um (acho que era só um) camelo, que também podia ser um dromedário, e vi bailarinas da dança do ventre, que vieram confirmar a minha teoria de que, para se dançar aquilo como deve ser, é preciso ter uma pancinha razoável. 

Esta foto é de quem sabe fotografar. A cadeira era fundamental no enquadramento, ok?
Determinei-me a ir aprender mais essa modalidade, mas terei que equacionar muito bem o que é que quero desta vida, ali na zona da posta: ventre liso (ginásio) ou gelatina feliz (dança do ventre). Não posso ter as duas, a menos que use um postiço ou defeque para o assunto
Estou tão cansada destes dois dias, que preciso de uma semana de férias para recuperar.
Adeus, e obrigada por não terem perguntado por mim, nem se questionado se eu estaria viva, ou acabado com o blog.
Cá beijinho.
 

21/06/2016

Já me estragaram o arranjinho

Ia eu tão animada conduzir até à 125 azul, eis que me arranjaram boleia. Os maricas, devem ter-se temido da minha condução, e não sabem eles da missa a metade. Assim, vou com as outras, como a Maria, e mais dois prestativos — diz que um deles vai ao volante. 
Discutia-se calorosamente (literalmente, pois torramos a 32º aqui na capital) quem é que ocupará o lugar do passageiro da frente. Por acaso, lembrei-me de avisar que enjoo de carro (ainda mais se, conforme está traçado nos maquiavélicos planos daquela gente, se tratar de um Mercedolas: aquele pivetinho a carro novo, a estofo da napa, a ambientador eucalíptico, o raio do motor que não se ouve, aquilo tudo muito veloz e leve, é coisa para pôr a menina entre os verdes e os azuis, chegando ao destino qual avatar — parecendo que não, eu fui nada e criada para andar de carroça puxada por bois, por caminhos de cabras. Tudo o que seja um nico mais evoluído do que isto, põe-me as tripas e o conteúdo gástrico à vela). Vai uma delas e sugere que eu vá à frente, onde, como é sabido, se enjoa menos. Ponderei aquela possibilidade por cerca de três a quatro segundos, findos os quais concluí:
- Olha que não sei se aceito. O lugar da frente é o lugar do morto. E, entre chegar lá toda vomitadinha — e, cereja no topo, mais magra —, ou morta, antes a primeira.
Choquei-as. Só me dou com flores.

A mulher orquestra

Senta-se à mesa da reunião, pousa sobre ela dois telemóveis, e ouvem-se tilintares: pulseiras do tipo escrava, largas e estreitas, musicam, interrompendo, por momentos, as conversas mais ou menos informais que já decorrem. Abana a cabeça, magra e escura, e retinem dois brincos, de cada vez que o faz, que são muitas: intervém constantemente, emitindo opiniões puramente pessoais, não necessariamente oportunas. Deita as mãos ao cabelo, puxando-o para trás, ao som de anéis vários, em quase todos os dedos das mãos de dedos curtos, com unhas roídas até ao sabugo. Toca um dos telemóveis. Retira os óculos da cara, presos ao pescoço por uma correntezinha, puxando-a por cima da cabeça, passando pelo colar metálico que traz ao pescoço, soando sinos, e pousa-os, ruidosamente, sobre a mesa de contraplacado. Ouve-se o contacto da massa dos óculos e do metal de todos os anéis da corrente sobre a placa. Decide sair da sala, para falar longe dos ouvidos presentes, não os incomodando. Fá-lo quatro vezes, por cada reunião de uma hora. Traz calçadas umas socas de sola de madeira, que batem, a cada passo, no soalho de madeira plastificada. À cintura, um cinto metálico, a tinir. Fora da sala, ouvem-se-lhe os passos, enquanto atende o telefonema que a levou para ali.
Preciso de um pouco de silêncio.
Preciso de mar.

20/06/2016

Quando pensas que a blogobola jamais será capaz de voltar a surpreender-te,

é o preciso momento em que te deparas com a citação de um poeta que não existe, criação heterónima de um blogger muito lido.

(E é claro que, para além de não ter havido pequisa mínima, também não é feita a revelação da fonte.)


Estou 'malouca

Na quarta-feira que vem, rumo ao sul, em viagem de trabalho-lazer. Dividida entre dois fogos — ir à boleia de um volante do qual desconheço a perícia, ou ir eu a conduzir —, ofereci-me para levar o maior carro da frota cá do lar, composto por sete lugares sentados e nenhum em pé. Até agora, fora eu, que tenho que estar dentro, açambarquei mais três inocentes, faltando-me ainda outras três para lotarmos a viatura e racharmos, assim, combustível e portagens.
O que eu ainda não lhes disse — e pretendo apenas dizer à chegada, ainda que a viagem leve sete horas —, é que nunca fiz uma viagem maior do que trinta quilómetros. É verdade. 
(Ah, doce libertação, esta que os blogs permitem às pessoas humanas: isto parece o confessionário do Big Brother, com a diferença que a senhora é uma senhora e não fala de temas.)
A primeira vez que fiz uma viagem maior do que ir de casa ao supermercado, foi puramente por vaidade e engano, naquele preciso momento em que as duas se encontram (que os há, basta pensar nas vezes que nos vemos ao espelho e ah, não era isto que eu queria ver agora). Queria ir ver de sapatos à Seaside* do Prior Velho, enfiei pela saída (ou entrada, dependendo da perspectiva) errada, e eis-me na Ponte Vasco da Gama, a para aí uns 70 à hora, na faixa da direita, na loucura, a ser ultrapassada e apitada por pesados de mercadorias até ao Samoco. Acho que ainda vi Alcochete pelo rabo do olho, e nada de trocar a ordem aos factores.
Mas agora, isto é em grande: vou fazer quase 300 quilómetros de uma só vez. Temo-me apenas pelas cãibras (ou câmbrias, como diria o povo), mas pode ser que uma delas se ofereça para massagista. E vou tomar uns suplementos de magnésio, a começar desde hoje. (Isto, parecendo que não, é, mutatis mutandis, muito semelhante à preparação de um atleta de alta competição.)
Estou há três noites a dormir com dois sabonetes dentro da cama, drivados à libertação de potássio. A primeira noite foi chata cumá potassa, já que chutei os dois para fora da cama (nos meus sonhos, eu sou um CR, mas não acerto nas traves, vai tudo para dentro da baliza), bateram no soalho e isso acordou-me e impediu-me de gozar do potássio o resto da noite, já que apanhar sabonetes não se apresentou como opção. Agora já consigo mantê-los aos meus pés, subjugados, o que, se não me der uma overdose potássica, pelo menos perfuma-me a cama e os pezinhos, que ficam a parecer aquelas almofadinhas de cheiro, em croché, que servem para meter no meio da roupa. Vale-me que não suo das plantas, caso contrário um destes dias acordava com a cama ensaboada à mão. Ao pé.


* com o selo NMPPI

19/06/2016

lost

Lembro-me do tempo em que fui a maior fã de um blog, e em que comentava praticamente todos os posts ali publicados. Era e é, embora agora com muito menos frequência, escrito por uma pessoa absolutamente genial. Depois, um dia, percebi que ocupava ali muito espaço, talvez até blindasse as caixas de comentários, impedindo ou fazendo perder a vontade de comentar também às outras pessoas. A constatação de que estamos a mais em algum lugar, é das mais chocantes, mais tristes e mais achincalhantes que podemos fazer. Mas há, como em muitas outras áreas da nossa vida, momentos em que nos apercebemos — porque os sinais estão todos lá, e, às vezes, até são verbalizados — que passámos todas as marcas, que a nossa presença já não é querida, que é chegado o momento de bater em retirada, antes que. Nessa altura, fiz o que tinha a fazer, moderando e praticamente desaparecendo daquele espaço que não era meu. 
Agora vi desaparecer um blog, exactamente pelo mesmo motivo: o de alguém que minou a caixa de comentários de tal maneira, que, explodindo-a, detonou com ela o blog todo.
E eu, que continuo incapaz de enfrentar mais perdas — mas, ainda assim, a degladiar-me com demasiadas —, tenho uma pena imensa (também de mim) por (sofrer) mais uma. Das grandes. 


Um homem só

Entraram os quatro no restaurante onde assistíamos ao jogo: pai, mãe e dois filhos, um rapaz e uma menina, ela demasiado grande para ir ao colo do pai, demasiado crescida para andar de chucha fora de casa. O pai, de corpo quadrado, demasiado desalinhado para os trinta e tais, envergava uma camisola de apoio à selecção. Sentaram-se os quatro atrás de uma coluna, de maneira que ele era o único que não tinha visibilidade para o plasma, pregado na parede. A mulher fez nascer um telemóvel nas mãos de unhas de gel, reviradas para fora, de tão ágeis as pontas dos dedos a teclar em cima do aparelho. À frente da menina nasceu um tablet, que os dedos acompanharam ao mesmo ritmo da chupeta. O rapaz tinha nas pontas dos dedos um jogo electrónico. E o homem fez a sua refeição calado.

~

Perto dos nossos chapéus de sol, outros dois, cuja sombra albergava quatro mulheres, sete meninas e um rapaz. Das sete, só duas tinham cerca de três anos, a mesma idade do rapaz. As restantes estavam todas no seu primeiro ano de vida. Uma das mulheres levantou-se e dirigiu-se ao mar, ostentando uma barriga de oito meses. As cinco bebés ensaiavam os primeiros passos, sentavam-se, levantavam-se e brincavam com a areia. Irmãs, primas, filhas de amigas, projectos de brincadeiras e cumplicidades, promessas de amizades para muito breve. As meninas mais velhas, entretidas a brincar entre si. O rapaz, completamente só. 

18/06/2016

Fim da linha

Chegou levemente, levemente atrasado, sem vontade de ficar, e anunciou que se vai embora: no final de Julho, André Pilateiro deixa as aulas de sábado, mantendo só as dos dias de semana. Razões familiares o prendem, libertando-o dali: ainda hoje deixei três mulheres — talvez tenha usado um eufemismo, tendo em conta que uma delas tem cinco anos e a outra dois — a soprar bolhinhas de sabão, numa imensa alegria, e eu tive que me vir embora. Disse isto, abrindo imensamente os imensos olhos de um azul imenso, e a sala encheu-se de bolhinhas de sabão, que acho que mais ninguém viu.
Não lamento, nem tenho pena. Desde o final do ano passado, aquando da morte da minha gata, que me habituei à ideia de que as perdas fazem parte dos ganhos e, por conseguinte, da vida. Por outro lado, depois de descobrir a modalidade das aulas avulsas, sou livre de fazer Pilates com ele sempre que me apeteça e tenha horário na minha própria vida. Além disso, e isto é um chavão, a vida é feita de escolhas e opções. Ele fez a dele, para a frente é que é o caminho. 
Quando tenho ataques de deitar fora bagulhos acumulados, e porque tenho uma limitadora dificuldade em cometer despedidas (cometer, sim, como crimes), sigo um mantra que inventei para mim mesma, como forma de libertação, em sentido estricto: se as pessoas acabam, por que é que as coisas não podem acabar também?
À saída, o risco traçado por um avião no azul do céu de Lisboa, a muitos pés, muito fora de pé, dizia-me que as despedidas fazem parte do percurso — quantas, só naquele pontinho do extremo do risco, terão acontecido antes da descolagem? —, e que o meu mantra também pode ser lido ao contrário: se as coisas acabam, por que é que as pessoas não podem acabar também?


17/06/2016

Animada reunite

Um destes dias, colocam-me a sprintar, que é como quem diz: põem-me a correr, mandam-me para a rua. (E eu vou.)
Eu sou insuportável. 
E eles também. 
Já não me bastava a outra, que é cada tiro, cada melro, tenho também que estar, constantemente, a dar lições de linguística ao que encarna o papel de big boss. 
Numa única reunião:

BB - Vocês sabem o que é que quer dizer procrastinar?
LB - Adiar.
BB - Não, procrastinar é ter preguiça.
(Devia desistir à primeira cabeçada. Mas vá que gosto de marrar.)

BB - Vocês sabem o que é que quer dizer mundo?
LP - Planeta, numa acepção mais vasta.
BB - Mundo é limpo.
LB - Como assim?
BB - Porque mundo é o contrário de imundo.
LB - Não, desculpe. Quanto muito, serão homónimas, homógrafas e homófonas, mundo como planeta e mundo como antónimo de imundo
BB - Mundo significa limpo.
(Qualquer ser normal desistiria à segunda. Mas eu sou uma... resistente?)

BB - Eu tenho que ter atitudes conducentes com o que prometo aos outros.
LB - Condizentes.
(Mas ninguém cala esta mulher?)

BB - Deixemo-nos de desvaneios.
LB - ...
(Linda menina.)

Diálogos à sombra # 23

Apresento-me, à saída da aula de dança e posterior duche, com as pernas vermelhas.
Pergunta-me um, preocupado (a sério que isto do olho está a ser um sucesso em termos de miminhos):
- Estás bem?
- Exaurida.
- E escaldada?
- Como assim?
- Tens as pernas muito encarnadas.
- Irrigada.
- Irritada?
(Como sou temida, para além de mimada, desde que tenho este olho assim.)
- Irrigada. Sanguinamente irrigada. Sanguinariamente.
(Muáháháhá.)


É preciso tão pouco para me fazer feliz

Final de um dia morno. Aula de dança. Coreografia nova. Fila da frente. Meia hora a dançar em espelho com o professor. 
E voltar para casa com a informação de que não preciso de mudar de programa, para um que custa mais do dobro do meu, por ser possível comprar aulas avulsas — que ficam, literalmente, quase de graça. 

Esta fez parte.
(Qualquer dia estou nas feiras.)

16/06/2016

Jacarandal

É uma árvore que dá uma flor do genital.
Um pouco por toda a minha bela cidade, bastante por todo o meu bairro, muitíssimo ao longo da minha rua —, que, se fosse minha, eu mandava-a enfeitar —, os jacarandás estão em flor, pintando atmosfera (e também as calçadas) de lilás, imprimindo a nostálgica tonalidade da agonia ao ambiente, aquele que é meio. 
A flor do jacarandá, frágil e bela, havia de ser estudada para a indústria de colas de contacto.
Uma pessoa humana deixa seu boi sob a anil árvore, e eis que, quando regressa, o que até pode ser escassas horas após, para além de ter o boi transformado numa dançarina taitiana, verifica ainda que as florzinhas roxas estão coladas à chapa, ao vidro, a todo o boi. Para além disso, tem o bicho todo revestido de uma gosma  peganhenta que, se não se besuntar imediatamente com óleo, arrisca-se a ficar colada à chapa, assim mesmo, pelo lado de fora. De seguida, e porque a visibilidade desce para 50 %, trata, como eu tratei, de ligar os pára-brisas mais mija-mijas, para que, ao menos, o vidro da frente desembacie, e, vá, possa andar para a frente. Esse é o feliz momento em que a cola do jacarandal faz uma demonstração da sua força, e a pessoa se apercebe de que as borrachas do limpa pára-brisas simplesmente estão agarradas ao vidro, não permitindo, sequer, que o sistema funcione. À terceira tentativa, que é a que o ditado dita que é de vez, as borrachas lá se desprendem, proporcionando-nos uma alegre mistura com a água e o detergente dos esguichos, espalhando uma também feliz papa, em tudo semelhante a ranho (mas do transparente, e caso tivesse ele propriedades adesivas).  Vencida, mas não convencida, a pessoa avança, com a vista comprometida, esfregando os olhos, passando o paninho no retrovisor (porque o vidro de trás também está opaco, mas parece mesmo que o que está sujo é o espelhinho de dentro). Passa ainda pelo estranho momento em que abre o vidro, e sente, por parte dele, uma ternurenta hesitação, colado que está à borracha da moldura. 
Quando fecha a porta do boi, ouve ploshhc. 
E rabisca umas quantas notas mentais:
1. Tem que ir dar banho ao bicho;
2. Tem que evitar deixar o carro sob jacarandais;
3. A Natureza, como qualquer mãe, tem caprichos;
4. A experiência é a madre das coisas;
5. Logo, a experiência e a Natureza são uma única entidade — e isto já é um axioma.

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 41

Faço interpretações ao pé da letra.
Lanche equilibrado.
No topo de um cone.

15/06/2016

O silêncio é de ouro

É sempre na copa que se me acometem estes ataques. Tenho que repensar a mania do chá.
Passa por ali ele e diz que vai de táxi. Eu sorrio, acho que de nervos.
- Do que é que te estás a rir, é de eu ter dito que ia de táxi?
- Sim.
- Antes Uber?
- Sim. Os taxistas nem uma passadeira de peões respeitam. A mim, nem me veem.
- A mim, dão-me sempre passagem. — Diz ele, e eu, por mais uma vez, pondero a minha invisibilidade.
Então ela, que assistiu calada a este pequeno diálogo, arruma-me KO com a sua opinião:
- É da áurea.
Dá-se, então, o momento em que a minha jukebox cerebral dispara isto:


Ando a ficar com baby blues

Os exemplares da colecção Baby Blues, que comprei na Feira do Livro, são, actualmente, a minha leitura nocturna. E só não são para aquela outra ocasião, porque eu sou uma senhora e não faço essas coisas. 
Mas é que ainda me faltam ler cinco dos seis, e já ando a ficar meio deprimida com a personagem Wanda, a mãe. Houve tempos em que me identificava com ela, mais nas situações por que passava do que na postura, com a nuance de que ela está em casa com três e eu tinha mais um, todos com idades bem mais próximas do que os dela. (Os 8 anos da Zoe são os primeiros meses da Wren.) 
Faz-me confusão que Jerry Scott, responsável pelos desenhos, jamais imprima um sorriso na Wanda. As poucochíssimas vezes que foi desenhada a rir, regra geral, foi porque teve um ataque de nervos qualquer. 
O boneco cumpre as tarefas domésticas como um autómato, num registo muito próximo da escravização: trata da roupa, pega nos filhos, conduz o carro, vai às compras, deita-se e levanta-se, arranja-se para ir a um jantar, sempre e sem excepção, com um semblante entre o triste, o zangado, o aborrecido e o esgotado.
A vida de casa, com crianças pequenas, é extremamente extenuante, não tem horas de pausa, a não ser por alguns minutos, não obedece a horários de fim-de-semana, feriados, férias ou simplesmente noites, não respeita dias de fraqueza, exaustão, doença ou mera preguiça. Levar a cabo a educação, que inclui cuidados, atenção, mimo, e muita perseverança, de quatro pessoas nascidas no espaço de seis anos não completos, é uma tarefa hercúlea, pontilhada por muitos momentos de desespero e arrependimento, pela mera sensação de incapacidade física e mental, que nos esmaga com muito mais frequência do que imaginámos antes. Mas é também uma vida vivida de gargalhadas e brincadeiras, de beijos e abraços a triplicar, no caso dela, a quadruplicar no meu, de alegre confusão, mas também de descanso quanto a ensinamentos básicos como o da justiça, consequência da necessária partilha, divisão e distribuição. 
Foi muito cansativo, mas foi também algo que eu repetiria, se recomeçasse hoje, mesmo conhecendo esse cansaço de antemão. E isso não me permite concordar com a forma como está a ser retratada a figura de uma mãe a tempo inteiro, como é a Wanda, para quem os filhos são um grande frete. 
E ninguém me venha cá com merdas que eu devo ter tido a casa cheia de criados e mil braços para me acudirem nas aflições, que eu, depois de correr tudo à dentada, ainda dou uma explicação básica de como esticar um único ordenado e fazer dele um orçamento familiar que nem os senhores do Gov seriam capazes. Já alguém ouviu falar de dinheiro que estica?



14/06/2016

Mãos

Quando pus verniz de gel nas unhas (não confundir com unhas de gel), não me lembrei de que, a seguir, vinha a saga de ter que o tirar lá, nas mãos da especialista. Três semanas volvidas, farta de andar a dar demãos com o meu verniz vulgar, retirei à unhada e à dentada partes do que ainda sobrava do resistente, e deu-se que adormeci com as mãos numa lástima de lascas. Até dormi de dedos encolhidos, não fora encontrar alguém de cerimónia nos sonhos, e não ter como explicar o estalanço do verniz, o desleixo a que tinha deixado chegar as unhas, espelho do meu aprumo, reflexo da minha alma. 
Acordei, naturalmente, com elas tristes, sós e abandonadas. Determinada a dar-lhes um pouco do mimo que merecem — são mãos de trabalho, as minhas: gastam-se no teclado e em afazeres tantos, que chego a pensá-las com autonomia em relação ao cérebro —, cortei as unhas bem curtas e parti cedo, em busca de quem mas pudesse salvar do caos.
Quando entrei num dos milhares de cabeleireiros que o meu bairro tem, dizia-me a sala vazia e a bancada da manicura que estava com alguma sorte. No entanto, ela disse-me que estava ocupada. Rodei os calcanhares das minhas sandálias mais bonitas e, quando já estava de novo à porta, ela, afinal, podia atender-me, já que a senhora de quem estava à espera estava atrasada. 
Calçou luvas de borracha e eu não mais lhe senti o toque, a não ser naquele liso desumano das luvas dela. Seguiu-se uma hora das nossas vidas, em que lhe entreguei as mãos e os pensamentos, incapaz de raciocinar mais para além dos parâmetros requeridos: unhas quadradas, verniz encarnado mais vivo do que eu. Mal encarada, estrangeira, magra, seca, quase muda, tentei tirar-lhe o perfil e imaginar que, longe de casa e dos seus, talvez a minha exuberância encarnada e piada fácil — que transpiro mesmo quando não tenho calor e me mantenho sem respirar —, lhe fossem incómodas. Decidi ignorar, aliviando a carga que, com tanta facilidade, instalo nos ombros. O trabalho dela revelava-se exímio, e, na verdade, eu não pretendia mais nada senão isso.
Já estava de mãos livres, quando entraram aqueles dois, apoiados um no outro: ela, com evidentes sequelas de uma trombose, sorriso largo, andar manco; ele, preso nela e por ela, o mesmo sorriso, andar dançante, ao ritmo do dela. Deixaram o cão à porta, entraram rindo e ele perguntou se podiam fazer uns caracóis ao cão. Contagiada, ri-me também e, quando eles passaram por mim, ela fez-me uma festa no braço, com uma mão de carinho e veludo — exactamente como ficaram as minhas. 

13/06/2016

Aos anos que não fazia isto

Se não foi há anos, foi há meses, muitos: estar um dia inteiro sem vir aqui dar uma beijoca, arear umas pratas, cortar uns calos. 
Verifiquei com agrado cínico que metade da blogosfera foi banhar-se de azul, enquanto eu fiquei, verde, a trabalhar que nem um ser sem alma. Deixem estar, que o vosso já está guardado, e o meu também.
Mas, como a vida não são só rosários, e é pontilhada de rosas também, comecei logo o dia a dançar (esta frase tanto se aplica a ontem como a hoje). No final, a professora quis saber a minha idade e caiu-lhe o queixo quando lhe disse nothing but the truth: dava-me, diz ela, menos, no máximo, onze do que os que tenho. Já enganei mais uma, e foi com a verdade, como diz o ditado. Ela é linda, e tem os olhos azuis. Hoje chamou-me para o palco, tal como fizera Miguel outro dia, com a diferença que não me chamou Marisa. Qualquer dia, vou mesmo, e depois quero ver quem é que cai primeiro lá de cima.
O meu olho continua em sangue, mas melhorou: agora, está vermelho por inteiro, de maneira que quase não se vê a menina. Está a ser bom viver assim, porque ninguém me contraria. Posso chegar ao balcão de um café e pedir uma bica cor-de-rosa, ou algo ainda mais escabroso, que o povo se desfaz para me fazer a vontadinha. Constatei isso na Feira do Livro, onde fui outra vez na sexta-feira, e aonde não houve livreiro que não desarmasse a barraca para me atender em condições. Devo ter ar de quem lhe vai rebentar o globo em 4-3-2-1 segundos, ou então saltar-lho da órbita, a jacto, para a cara do interlocutor. Seja como for, está a ser positivo.
Deve ter sido por isso que a miúda me tirou onze anos à idade. 
Da Feira, trouxe o que planeava da outra vez em que lá havia estado:


Hoje é que era de lá ir, parece que vai chover.

(Veem por que é que não vim cá ontem? Não tenho nada para contar. E também não venho dizer que fiz uma aula de dança com a etiqueta de papel ainda presa à saia, não acham? Quando percebi isso, fiz uma pequena prece para que tivesse estado sempre do lado de dentro. Mas não sei se os deuses sequer me ouvem, ou se não serão sistematicamente vencidos pelas bruxas.)

11/06/2016

É que ontem foi Dia de Portugal

E eu devia, por dever de Estado e cidadania, ter escrito uma coisa inteligente.
Em vez disso, perdi-me nas minhas minudências. Não sei quem é que quer saber se me pagam os trabalhos ou não. Ou das minhas aulas de dança. Ou dos cartazes com erros ortográficos. Nem eu quero, quanto mais os outros.
Na mesma semana, isto e isto.
Parece uma grande contradição, senão uma trágica ironia, que uma mulher morta possa ser mãe, enquanto uma viva não, embora, para tanto, tenha que recorrer a um método enviesado, segundo os cânones da Natureza.
Pergunto-me se ser mãe após a morte, assim como ser pai, não é também uma estranha forma de (dar) vida.
Não me sei responder a nada destas questões. Sei que não alugava a minha barriga. Sei que, se, no limite (da pobreza, da angústia, da perda), alugasse, queria ficar com a criança que gerasse (mesmo que viesse doente, sim). Sei que, estando grávida e em pré-morte, quereria que salvassem o meu filho a todo o custo, incluído o da minha própria vida.
Sei tão poucas coisas, que me cabem, todas juntas, na palma de uma mão, e são capazes de voar à primeira brisa que as percorra.
Sei que vivo em Portugal, o país que, na mesma semana, permitiu que uma mulher morta fosse mãe, mas não permite que mulheres vivas decidam sobre o seu corpo para que outras o possam ser.


10/06/2016

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 40

Vejo erros ortográficos espalhados pela cidade toda.
Vai a pessoa a circular na segunda circular, passe o pleonasmo, e depara-se, de metros a metros, com isto:




Olá, Olá... ♫♪

Miguel não é malandro

Instada por Miguel, o mestre, e apenas à terceira tentativa (dele), cedi e fui a uma aula de dança.
Sou tão difícil. 
Sou tão fácil.
Mas dá-se que sofro de passwords: praia; dançar; sushi; vegetariano, e mais umas quantas, e têm-me lá certa e sabida. 
A aula foi-me oferecida por ele, uma vez que é à quinta-feira, e não cabe no meu horário. Mas ó: ele é um comercial, quer vender planos, tem todo o interesse em agarrar lá mais gente em horários onde se insiram as aulas dele, e também interesse em ter gente nas aulas que dá. Não estou para aqui a dizer que ele me quis na aula pelos meus lindos olhos (ou feios, dependendo da perspectiva, dada a situação actual de um deles. Pareço o Demo). Acontece ainda que eu sou este poço sem fundo de ternura, mas também gosto de receber miminhos.
Certo.
E foi lisonjeiro ter-me oferecido a aula. Foi.
E foi lisonjeiro ter dito, no início e para o povo, que eu devia ir para o palco, para o lado dele. Também foi.
Mas eu não fui, cá por coisas. Ainda por cima, chamou-me Marisa. Não sei onde foi ele desencantar este nome, mas é repeti-lo e terei que passar a chamar-lhe Manuel, a ver se ficamos quites.
O Miguel é pequenino, mas dança esplendorosamente. Dança tudo, bate as latinas todas de seguida, hip hop, depois afro melhor do que as pretas. Mesmo, sem exageros, favores e, sobretudo, sem racismos. 
Arranjou-me um problema novo, pois já não me chegavam todos os que já possuo (ou me possuem a mim, melhor dizendo): mudar de plano, para ter acesso às aulas dele.
Sector comercial do ginásio - 1; Linda, a influenciável - 0.
De entre outras, dançámos esta:



Only love bring us together 
(O melhor é continuar a dançar)

E aquele doce momento

em que lanças uma nota de honorários e, quase quinze dias depois, te respondem que [tu!] podes fazer a transferência do valor indicado?

(A sério que a mim só me saem duques e cartas furadas, ou sou eu que ando sempre em contramão?)



09/06/2016

Bem sabia que já alguém havia vivido aquilo assim. E descrito, de forma tão melhor do que algum dia eu

Na sexta-feira à tarde perdi o meu filho.
Foi uma emoção aterrorizadora que jamais havia sentido. Quando contemplei, sentado, a praia do Guincho, vi na maré baixa centenas de banhistas, jogadores de raquetes ou futebol, e dezenas de crianças, que gritavam ou chapinhavam. Mas não vi o meu filho. Cinco minutos antes, deixara-o, com uma pá amarela, um balde do Homem-Aranha e um ancinho verde, a refazer o seu castelo de areia. 
(...)
A trinta metros, perdi o meu filho.
Quando voltei a olhar, só lá estava a pá, caída no chão, ao lado do balde e do ancinho. (...) Senti uma chicotada de angústia, como se tivesse sido picado por uma vespa no coração. (...) Enquanto andava, as coisas à minha volta iam perdendo a sua nitidez, como se uma estranha bruma nascesse na praia e me toldasse a visão.
(...)
O pânico entrou-me pelos poros, como um invasor maligno, e transformou-se em medo, nem sequer sentia o frio da água do mar do Guincho a lamber-me os pés, e apenas a minha cabeça funcionava, como um periscópio à tona, a examinar o horizonte, rodopiando à procura de uns calções laranja com flores brancas (...)
Desabou então sobre mim a consciência da situação: estava numa praia com milhares de homens e mulheres e crianças e chapéus-de-sol e toalhas, um território ocupado ao milímetro, como um campo de refugiados, só que felizes, uma multidão alegre e barulhenta que me engoliu o filho.
(...)
Tentei dominar a besta do pavor que rugia dentro de mim, ter mais força do que ela (...)
Descobri-o no horizonte, sem pá, sem balde e sem ancinho, mas de cócoras ao lado do meu amigo Salvador, os dois cavando furiosamente na areia. Olharam na minha direcção e acenaram os braços, como numa despedida, e de certa forma estavam a despedir-se da minha angústia, da minha curta-metragem de terror que acabou tão depressa como começou. Quando cheguei ao pé deles nem me passou pela cabeça repreendê-los, e fiquei de pé, a sentir a minha respiração e a batida cardíaca a acalmarem. E depois mais nada, regressou a normalidade.

Domingos Amaral, in 'Já ninguém morre de amor'

....

E também aqui, no assombroso mil — embora aquilo que vivi tenha tido muitíssimo menos gravidade.


Aprende a ler os sinais que a vida te dá

Nunca tínhamos trabalhado juntas, mas o acaso juntou-nos. No meio de tanta gente, somos as únicas com o mesmo nome próprio.
Seguimos para a reunião no carro dela, um Smart, rindo da coincidência dos nomes, e depois da outra que descobrimos de imediato: ela também tem quatro filhos, só que são três rapazes e uma menina. Quando chegamos, verificamos que a pessoa com quem vamos reunir também vem de Smart. Diz-nos que é educadora de infância, e estamos no Dia Mundial da Criança. O local chama-se Ameixoeira, e há umas ameixas pequenas, largadas por árvores que existem um pouco por toda a cidade, provavelmente incomestíveis, manifestamente cor-de-ameixa.
Digo-lhe:
- Lê os sinais. Esta reunião vai ser um sucesso.
Ela responde:
- Se for, passas a ser a minha bruxinha.
Foi um sucesso. E eu acabei promovida à categoria de bruxinha de uma homónima minha. 

Tomara ser histérica

Acordei ao som de badaladas, de dores lancinantes, a tocarem no meu olho esquerdo. Não fui logo ver-me ao espelho, por uma questão de princípio e lógica emocional. Tinha a sensação de ter engolido um garfo com o olho, mas, assim que verifiquei a origem de tamanho mal estar, percebi que não, que, afinal, havia engolido um bife inteiro.


Entrei pela farmácia madrugada adentro, talvez ainda nem 9 horas fossem.
Dizia a farmacêutica para o rapaz que atendia:
- Vou-lhe dar uma coisinha para o acalmar. Isto não faz mal nenhum, mas sempre o ajuda a acalmar-se.
Chegada a minha vez, mostrei-lhe o olho, assim de viés e soslaio, e perguntei, a seco:
- Alguma coisa para isto?
Talvez só precisasse da resposta que ouvi, talvez devesse ser uma boa histérica, para que nunca mais acordasse com o olho em sangue:
- Sofreu algum pico de tensão?
Todo o meu ser estremeceu de gozo puro, autocomiseração e sarcasmo — aqueles mesmos sentimentos e sensações que fazem de mim uma pessoa má, digna dos infernos , intimamente gargalhando aos gritos e guinchos, exteriormente uma senhora impávida, de branco vestida. Sinceramente sorridente, saí ligeira, sem remédio, respondendo, volátil:
- Sim, mas isto passa.

08/06/2016

Não sei se existe uma forma elegante de dizer isto,

mas é que hoje ia-me afogando. 
Neste momento, sou ex-pré-pré-afogada.
Mas valeu a pena. Fui salva por um sereio, que parecia caído sei lá de onde, mas que do céu é que não era.
Deu-se que verifiquei que uma das minhas crias se encontrava em semi-apuros, tendo em conta que nadava, nadava, e não saía do mesmo lugar, e do que é que me lembrei, assim no imediato? Vou lá salvá-la. Eu já tirei filhos do mar, até filhos que não são meus e a quem amo como meus, ou portantos, esta era só mais uma. Esqueci-me foi de dois pormenores: 1 - Eu já não tenho as forças que tinha há 6 ou 7 anos; 2 - Eles já estão maiores e, por conseguinte, mais hábeis para se desenrascarem sem mim. Porém, quis que se lixassem os pormenores, e vai de me enfiar mar adentro. Se estivesse aqui a Blue, com aqueles retoques poéticos dela, já estava a dizer que se o mar lhe tragasse uma cria, havia de a tragar a ela também e merdas.
Ora, lá chegada, ambas fora de pé, dei-lhe o braço para ela se segurar e pus-me a nadar, tipo em seco, pois que não saía do mesmo lugar. Aliás, julgo que ainda nos arrecuei uns centímetros largos na direcção da linha do horizonte, aquela tal que a outra diz que prega lá os olhos, onde acaba o céu, haja pachorra. 
A seguir, quase morta de cansaço e de vergonha, mas ainda sem ter bebido um golinho sequer de água — portanto, em fase de pré-pré-afogamento — resolvi avisar o rapaz de que não se aproximasse de nós, pois estávamos incapazes de sair dali. Tipo o povo, quando está agarrado à corrente eléctrica, se algum se aproxima, também lá fica. Mas acontece que ele não podia ser mais parecido comigo, e entendeu vestir a capa de super-herói e salvar as duas. Lá chegado, estendeu-me um pé (mesmo à gajo), e foi quando aquele anjo vestido de amarelo me surgiu e perguntou se estava tudo bem. Daí a salvar-me e trazer-me para terra e para a Terra, foi um traque (não dei, já disse que sou uma senhora). Os outros dois acabaram por sair pelo seu próprio pé, imagino que verdes de vergonha da porra de mãe que lhes havia de ter calhado na rifa.
Uma hora depois, ainda consegui perdê-los aos dois na praia: meteram-se mar adentro com as pranchas e lá tive que ir aborrecer o meu salvador outra vez — que, coitado, correu a praia de lés a lés, ainda saiu da sua área de intervenção, só para me dar apoio, que já quase chorava que este estava a ser o pior dia de praia da minha vida. Quando eu já via tudo negro, os outros dois acabaram por surgir, saídos da água, pranchas debaixo do braço, imagino que verdes de vergonha da porra de mãe que lhes havia de ter calhado na rifa.
E sim, odiei. Ia indo com os porcos.
(Antes vento e chuva e tempestade e os olás-fresquinhos e as tatuagens no rabo e os fogareiros e os pique-niques e as crianças que nos aventam areia e o genital.)

Hoje é dia de mar

Claude Monet, La mer à Pourville
Diante dos olhos, 
                             atrás dos olhos, 
                                                        quedos na linha do horizonte, 
                                                                                                           onde o céu acaba — 
                                                                                                                                                o céu não é o limite.


07/06/2016

A volta uterina

O dia amanheceu naquela paz única que antecede as ondas mais altas, claro e transparente, mas eu vi-o, ou antevi-o, rubro. Procurando a fotossíntese, vesti-me de encarnado. Apercebi-me hoje de que estamos em Junho, e Junho é-me amargo até ao último dia. É bom, no entanto, que tenha passado uma semana, sem que me tenha doído como antes. Já vão anos a mais sobre os meus Junhos, e pesam-me os Junhos todos que sobre mim carrego. Pode ser que, por razões de desesperada autodefesa, este ano lhe tenha anulado uma semana. Quem sabe se, nos próximos milénios, se lhe eclipsam as quatro.
Calhou-me na volta ir à Avenida Guerra Junqueiro, e ditava-me a lógica que subisse a Alameda, depois seguisse em frente pelo Técnico e apanhasse as Avenidas Novas, atravessando a República, continuasse pela 5 de Outubro, Álvaro Pais, Eixo Norte-Sul. Era essa a lógica cerebral, mas estamos em Junho e foi a volta uterina que me deixei dar: Avenida de Roma, onde fui concebida, Avenida dos Estados Unidos, onde foi concebida a minha irmã, Avenida das Forças Armadas, onde foi a nossa casa. Ainda lá está, apesar de ser Junho, a janela daquele que foi o nosso quarto. 

Isto é no que dá ter a pdm

O tamanho da lata!

Já em tempos o meu amigo romeno me havia limpo uns riscos no boi (nunca feitos por mim!), com o mero recurso a um papelinho cinzento. Diante do meu espanto, daquela vez, para mo comprovar, foi buscar o papel a uma poça de água no meio da lama e mostrou-me a maravilha com que tinha operado aquela outra maravilha — que parecia mesmo uma borracha, a apagar lápis de papel branco. Na altura, dei-lhe uma moeda, já não sei de quanto, mas não há-de ter sido de muito, visto que as mais altas que existem não chegam para mandar cantar um cego, quanto mais para transformar um cigano em pintor e bate-chapas.
Hoje deixámos de ser amigos, drivados da lata dele.
Saí do carro e dei-lhe a moeda para lhe agradecer o lugar que ele não me tinha arranjado. É claro que o princípio está errado.
Ele veio, naquela fala esquisita de quem só não entende o que não quer, e perguntou-me se eu queria que me tirasse os riscos do carro. Eu, para quem a pressa é inimiga da perfeição, disse-lhe que sim, confiante que ele ia usar o papelote da outra vez. Quando voltei, ele disse-me que já os tinha tirado, e eu ai, muito obrigada, ai que tenho pressa, mais logo falamos, e vai de lhe dar a única moeda que tinha comigo: um euro. Olha a extravagância.
Eu bem vi a cara de parvo com que ele ficou, mas isso pode acontecer aos melhores.
Depois de almoço, volto a deixar ali o boi, e vem ele, todo lampão, a perguntar-me se tinha gostado do serviço. E eu, que ainda não tinha tido três segundos para dar a volta ao carro e verificar o destrago, lá o contornei, ai muito obrigada, ai que tenho pressa, mais logo falamos, e vai ele e diz-me que gastou 15 euros na lata. Como a mim também nunca me falta patuá, respondi-lhe, sorridente, que não lhe pagava a lata, e tuca-tuca, ali fui eu à minha vida.
Eu bem vi a cara de parvo com que ele ficou, mas isso pode acontecer aos melhores duas vezes no mesmo dia.
De volta a meu boi, tenho o amigo pré-inimigo na minha cola, que gastou 15 euros na lata e que, se eu não lha pagar, me tira a tinta que pôs, usando diluente (também já o tinha comprado, que oportuno!), que, por sua vez, me iria estragar a tinta do carro e rebebéu com ameaças deste calibre, que até comecei a ouvir violinos nos telhados circundantes. Oh meu amigo, isto é muito simples, eu não lhe encomendei o serviço, não lhe vou pagar a lata, acabaram as moedas para todo o sempre e, se tiver alguma dúvida, chamamos já a polícia, que isto se esclarece em três palavrinhas apenas. E olhe, passe bem.
Eu bem vi a cara de parvo com que ele ficou, mas isso explica-se com aquele ditado que diz que não há duas sem três.


A ver se te consigo calar

Estou na copa e ela anda ali a cirandar, diz que precisa de um chocolate para entreter a fome. Até aqui, tudo bem.
Pergunto-lhe se quer um chocolate, diz que não. E lamenta-se:
- Assim, entretia a fome.
E eu a tentar perceber que raio de verbo era aquele. Não o logrando, insisto na minha oferta:
- Mas queres um chocolate?
- Não, andava aqui a ver de pó de chocolate, para lhe deitar água. Assim, entretia a fome até ao almoço.
Num silêncio sepulcral que nem é meu apanágio, pus-lhe um pacote com cinco Maltesers em cima do teclado e fui à minha vida, antes que me desse um coiso.


06/06/2016

Quando tentas perceber se aquilo foi um elogio

Estás tão gira hoje.

Tinhas umas pernas tão bonitas. [Hei, tia, e dizer-mo quando as tinha?]

Granda brasa. [Num dia em que está tanto calor, que...]

Tu escreves como falas... e falas como escreves... e... pronto... e isso é... bom...

05/06/2016

Ainda tenho arranhões

Veio outra gata cá para casa há quatro meses, mas os meus arranhões já contam seis. Neste momento, tenho um, extenso e profundo, no braço direito, e outro nas costas da mão direita. Parecem ferimentos de autodefesa, aqueles com que fica quem é atacado à faca, e pode ser que sejam. Ela não suporta ver-me fazer a cama, ou arrumar roupa. Detesta unhas encarnadas, e ataca-me as mãos e os braços. Cada arranhão que me desfere, crava-me a sangue na memória a falta da Mel, faz-me uma risca vermelha, a eito, em cujo rasgão se lê a palavra saudade. De alguma maneira, este animal adivinha-me a incapacidade para esquecer e arrumar o assunto do outro, vingando-se, com raiva e incompreensão, pelo afecto ainda incumprido, ainda inconstruído. 
Passaram seis meses, metade de um ano, e eu ainda tenho o coração todo arranhado.

Foi tão blogger da minha parte # 5

Isto faz de mim uma intelectual de calibre 0,905 — que, conforme sabeis, é o calibre mais alto do mundo: fui à Feira do Livro e comprei livros. 


Encontrei esta colectânea quase ao preço da uva urinona, numa base de levas 3 e só pagas 2. Ou era ao contrário? Pois, não sei, mas sei que o difícil foi escolher, pois faltam-me quase todos e, se os quiser possuir, ou me apresso e aproveito quando eles se apreçam desta maneira, ou nunca os terei, porque parece que eles se publicam como as silvas, a uma velocidade que a minha carteira não acompanha, qual inflação desenfreada. 

Fui pela calada da noite, que é quando gosto mais da Feira. Evitam-se as multidões de carrinhos, famílias unidas que marcham compactas nos corredores, onde se inclui, invariavelmente, a pessoa que anda a passos de gueixa, os fumadores do cigarro quase rente a toda eu, e os abusadores que desconhecem o significado de perímetro mínimo.

Posso afirmar que fiz uma entrada mais ou menos triunfal na Feira, porque surgi pela floresta que a ladeia, tendo descido a rampa relvada, que é a pique, até ao passeio, sem um único deslize. Era tê-lo tido e já entrava de gatas na Feira, o que nada seria de estranhar em se tratando de mim, mas acontece que acho que já estou um bocadinho mais crescida. Aquela descida com a sandalete do meu coração teria sido para os anais. (Da História da Feira.) Deu-se que tive um ataque de inteligência antes de ir, reprimi quase a vergastadas a minha indómita vontade de estrear as super-sandálias-2016, e calcei a sabrina balalaica.

Mal havia entrado, apercebo-me da palestra de uma pessoa importante e conhecida, que eu não sei quem é, mas que proferia o seguinte discurso:

- Nós vivemos rodeados de influências, diariamente influímo-nos uns aos outros.

Fui querida, porque passei por ele e o meu Tourette exclamou: "influenciamo-nos". Vá que segui caminho, antes que o palestrante amostrasse o seu desagrado pela minha gentil correcção. 

Vou voltar à Feira, especialmente porque ainda não choveu. E diz a tradição que Feira do Livro sem chuva, não é Feira. Quero trazer mais livros da colecção de poesia que ilustrei acima. De qualquer forma, deixei lá, à minha espera, um livro sobre mamíferos a um preço de mamas, e também quero outro saco do Fernando Pessoa, que este ano é azul turquesa, e dá-me uma jeiteira quando vou aos brócolos. Aí, sim, atinjo o pináculo da intelectualidade, eu a sair da mercearia e a passar pelo Avelino com o meu saco do poeta, num enorme desassossego.