01/06/2016

O final da infância

Portou-se mal, a escola castigou-o. Apesar dessa causa-efeito lógica, ficámos ambos surpreendidos com a chegada da notícia: ele não bateu, não roubou, não mentiu, não foi mal educado com nenhum professor nem funcionário. Por isso, um procedimento disciplinar lhe e me pareceu exagerado, à partida. No entanto, fiz a minha parte: cumpri a lei, desloquei-me à escola para tomar conhecimento, depois para assinar a autorização para o cumprimento da medida, e assisti, nos dias seguintes, de forma nada impassível, à revolta dele, à percepção da desproporção do castigo, pelo jugo implacável de quem, sob a égide de poder aplicar normas, o fez de modo absoluto e aparentemente incontestável. Sei, contudo, que, se quisesse chatear-me mais, bastar-me-ia pegar no relatório da "ocorrência", e, com todas as deficiências facilmente detectáveis nele, poderia, também com relativa facilidade, anulá-lo, impugná-lo ou dele recorrer. Mas aumentaria igualmente o tamanho ao problema dele, na semana que é a última do ano lectivo, arrastando para a pausa escolar um não-assunto, tornado super-assunto. De uma forma algo lusa, preferi o come-e-cala, embora para nosso desassossego — grande, o meu, gigantesco, o dele. 
Nunca fui de aplicar castigos e, talvez por isso, não tenho sabido ter mão firme no meu rapaz. Não sei bater, ralho num tom de drama que nem sempre merece crédito, e o máximo que sei fazer, no campo das punições, é retirar um privilégio, ou atribuir uma tarefa. De resto, sou uma nódoa negra, enquanto carcereiro, carrasco ou juiz. 
A hora marcada para o início do cumprimento da medida punitiva aproximava-se, mas eu não sabia onde o encontrar. Queria falar-lhe, dizer-lhe não sei o quê. Mais do que repetir-lhe o quão gosto dele e nele acredito incondicionalmente, queria certificar-me de que não falhava a pontualidade. Mas não o via em casa, nem ele me atendia o telemóvel. Mandei mensagem, nada de resposta. 
Liguei para a escola, ninguém sabia dele.
E disparou-me o coração.
Sou uma pessoa adulta, pensei, enquanto o pânico, como uma pele indesejada, começou a cobrir-me e a apertar-me sem remédio. Raciocino, então, que o facto de não ter dado entrada no cartão da escola, e depois também não ter dado saída, é considerado normal; raciocino que pode ter tido um teste no último tempo, e ter-se atrasado; raciocino que acho que não aconteceu nada. Mas passa uma hora sobre o horário de saída, e eu não sei dele.
Eu não sei dele. Esse pensamento, feito terror, domina-me por completo. Não sou capaz de ficar onde estou, meto-me no carro para ir para a escola, vasculhar nos computadores do livro de ponto, se há faltas registadas no dia de hoje. Uma das irmãs garantiu-me que entrou com ele na escola, mas eu tenho o coração espremido contra as costelas, do lado de fora, que foi onde ele se alojou desde que me fizeram mãe. Já não raciocino porra nenhuma, todos os piores filmes me passam pela cabeça. No momento em que ligo o motor, o telemóvel toca e vejo que é ele. E desabo inteirinha, em mil cacos de porcaria, dessa mesma em que me transformei no tal dia em que o coração se me alojou fora do peito. É num choro quase infantil que o atendo, impaciente,
Que exageros, mãe!
E eu morta, de tanto susto, de tanto medo, de tanta felicidade, de tanto alívio.
Tinha tido torneio de futebol, e só tinha acabado àquela hora.
Corri ao encontro dele na mesma, levei-lhe uma espécie de almoço, precisava de confirmá-lo bem, de alimentá-lo.
Sei que ele cresceu, e que devo deixá-lo pagar pelos seus erros.
Sei que já não é uma criança.
Sei que também eu, já não sou uma criança.



4 comentários:

  1. E, no entanto, a criança que fomos vai e volta, como o pêndulo de um relógio. A nossa necessidade de colo vive connosco, mesmo quando nos esquecemos que já não somos crianças. A verdade é que não somos, mas continuamos crianças.
    Gostei tanto de a ler, querida Blue, que lhe deixo aqui um abraço apertado e sentido.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Já não somos, mas quantas vezes a sentimos, ainda viva, cá dentro, para o bem e para o mal? A mesma que nos traz picos de alegria infantil, a mesma que nos faz sentir pequenos outra vez... :)
      Obrigada, minha querida. Gosto muito desse seu abraço.

      Eliminar
  2. Como te entendo, também eu acho desproporcionados alguns castigos parentais a uma criança que é apenas UMA CRIANÇA. Mas não me intrometo, não desautorizo, no entanto, não entendo. O meu, ainda aqui debaixo da minha asa, não me prega sustos desses mas também choro que nem criança quando ele se desassossega. Partilhas a tua angústia duma forma tão real que a sinto por ti mas não deixa de ser bonito :) Beijo enorme para ti e para ele

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu não consigo alhear-me do papel de mãe, no que toca a sentimentos. Não sei ser absolutamente isenta, ver onde está o erro, concordar com o castigo, satisfazer-me com o seu cumprimento. Na sala da direcção, dei comigo a dizer "Sabe, ele é um bom menino...". Porque é, genuinamente, um bom menino. E o castigo foi francamente desproporcionado. Mas lá está, eu sou só mãe...
      :)
      Obrigada, Be.
      Beijinhos :)

      Eliminar