Chego à caixa para pagar o bacalhau desfiado que será o jantar de hoje e está uma senhora a acabar de pagar as coisas dela. Vem com a filha de 12 anos. Sei a idade certa porque me lembro dela recém-nascida. Toda a gente se conhece neste bairro, uma ida à mercearia é quase garantia de encontrar alguém, e deve ser por isso que eu nunca vou às compras, nem que seja para ir aos alhos ali à esquina, de bata, carrapito e chinelos — não que me falte a vontade, mas porque é certinho que vou encontrar alguém conhecido, que pensará, imediatamente, Ai, tão acabada, tão gira que era quando era nova, tipo anteontem —, e sim vestida como se fosse para um casamento na Penha Longa, sei lá, é a loucura do tafetá, do stilletto e da capeline.
Era a brincar.
De repente, a miúda começa numa choradeira aguda.
- Mamããããã, tenho uma abelha na perna!... Mamãããããã, tira...
A mamã da miúda é uma pessoa muito lenta. Move-se devagar, e fala como se estivesse sempre sob o efeito de barbitúricos. Também faz raciocínios ao ralenti, e isto sei porque já tentei ter um diálogo com ela, mas desisti por exaustão ou adormecimento, não me lembro bem. Aquele tipo de pessoa que leva tanto tempo a completar uma frase, que nos faz perder o fio à meada a nós.
A velocidade a que se virou para a perna da miúda e lhe chegou ao cérebro a mensagem de que aquilo na perna da filha podia ser uma abelha, e que as abelhas, às vezes mordem, e que aquela abelha talvez mordesse a perna à filha, e que talvez a filha estivesse lá ao longe a chamaaaaaaar mamããããããã, deu-me a mim tempo de me baixar quase ao nível do chão, assobiar para a bichinha e, uma vez que ela não saiu com o assobio, sacudi-la para o chão. E a abelha ficou de pé, viva, e inteira. Longe da perna da miúda.
Senhora Dona Lesma, ao avistar a abelha no chão, deve ter recebido segunda mensagem, assim muito devagarinho, abelha-minha-filha-eu-sou-mãe-e-protejo-e... ahhhhhh.
E pisou a abelha, com toda a força da pata de sandália de madeira.
E eu exclamei Ohhhhhhhh!
E a miúda, ainda assustada, e agora aterrorizada, exclamou Ohhhhhhh!
Senhora Dona Lesma, envergonhada, arrastou baixinho Desculpem, mas agora tinha mesmo que ser.
Hi-hooooooooon.
agora tinha mesmo que ser...
E a miúda, a perceber o meu desgosto, Obrigada...
E sai-me, desconexo, deslocado, descontrolado, A abelha não precisava de morrer...
Não sei que lição tirou a rapariga deste episódio.
Sei que eu não tirei lição nenhuma. Mas tive uma vontade súbita de abanar a Lesma e de lhe perguntar se não se envergonha de tirar uma vida diante da pessoa a quem deu a vida.
Sou tão anormal. Mas nunca mais lhe falo. Assassina.
Sem comentários:
Enviar um comentário