17/09/2015

Inadjectivável

Cheguei lá a preparar, mentalmente, o discurso, tentando evitar os adjectivos. A fúria, às vezes, tolda-me a razoabilidade, e isso faz com que classifique de forma estúpida e desfocada do assunto. É por isso que não gosto de adjectivos, ou, pelo menos, os trato com pinças. São sulfúricos. Não sei o nome da pessoa que me tratou mal outro dia, mas sei que é gorda. Não posso entrar no gabinete da directora e dizer-lhe Aquela sua funcionária gorda... No entanto, detesto alguns eufemismos, e 'forte' é o Tarzan Taborda, como dizia o outro. Além disso, há ali duas funcionárias que são gordas. Uma usa óculos e a outra não. Só se disser Aquela sua funcionária que não usa óculos... assim cheiinha... Não vou chamar cheiinha a uma mulher desagradável.
Enfim, saio do jardim e subo as escadas de acesso à casa onde mora a minha mãe. Na porta não está escrito, mas eu leio um quadrinho que vi há pouco: Home is where mom is.
Noto logo que o gabinete da directora tem a persiana fechada, o que não me dá alívio quanto à intenção que me movia, mas dá quanto à escolha das palavras e à arrumação dos adjectivos, que não estão feitas. 
Encontro a minha mãe com um vestido bege muito clarinho e um casaquinho branco, todo abotoado, pequenino, mas que lhe está grande, e, por isso, tem as mangas dobradas, como se faz aos recém-nascidos que chegam sem tamanho de gente. O cabelo muito branco encontra ali uma harmonia, que me faz dizer,
Mas que linda, toda branquinha, parece uma noiva...
Encontro-lhe o cheiro a mãe, num perfume que tinha quando eu ainda era só filha, pelo beijo abraçado que trocamos.
E, ao lado, no mesmo sofá, o meu pai. 
Incrível, a semelhança daquele senhor com o meu pai. Se, durante muito tempo, não me foi possível fazer o exercício mental de o envelhecer, e passei muitos anos a vê-lo na rua com a idade que tinha naquele dia último dele, agora consigo vê-lo com a idade que teria se esse dia não tivesse chegado. É mais novo do que a minha mãe, este senhor. Era mais novo do que a minha mãe, o meu pai. 
Outro dia, estávamos as duas filhas. Apontei para ele, e disse-lhe: Queres ver o pai? Olha para ali.
E os olhos dela em lagos profundos, As saudades são isto, nós ainda conseguirmos vê-lo.
Fico de mãos dadas com a minha mãe, mas não consigo desviar o olhar do companheiro de sofá dela. Tenho medo que ele pense que eu tenho qualquer intenção, mas ele, ao contrário de um ou outro, apesar da distância etária e de todas as outras, olha para mim e sorri, paternal. É o que eu vejo, é o que eu sinto, e os sentidos é que fazem sentido. 
O fisioterapeuta aproxima-se e trata-o por senhor engenheiro. E isso dispara-me o coração. Não quero saber o nome do senhor engenheiro, porque pode ser Henrique e posso não suportar mais essa coincidência.
Ele adormece e eu, ladra de almas, fotografo-o. Preciso de guardá-lo, antes que lhe volte a chegar aquele dia último dele, e o reencontro leve mais duas décadas a acontecer.
A minha mãe fecha os olhos também, e tenho diante de mim a imagem dos meus pais, muito velhinhos, a dormir, lado a lado.
E saio, absolutamente em paz, reconciliada com o mundo — sem adjectivos.

10 comentários:

  1. Sem adjetivos.
    Deixo-lhe apenas um beijo.

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    1. Temos ritmos semelhantes, querido Outro Ente: andei lá pelo seu espaço e fiquei sem palavras nenhumas — nem adjectivos, nem de qualquer outro tipo. Como sempre faço, vou voltar e tentar encontrar alguma ou algumas que não desmereçam as suas.
      Um beijo para si. Obrigada.

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  2. Só tenho um adjetivo - maravilhoso! "É o que eu vejo, é o que eu sinto, e os sentidos é que fazem sentido."

    Um beijinho e obrigada por partilhar tanta sensibilidade

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    1. Os sentidos não costumam enganar-nos. São eles que nos mantêm vivo o instinto animal, ou seja, que nos conservam genuínos.
      :)
      Obrigada, Miss Smile.
      Um grande beijinho.

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  3. Henrique...
    Um texto fantástico.
    Obrigada.

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    1. Obrigada eu, querida.
      Mais luz, hoje?

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    2. Hoje é um não dia querida.
      Espero que a partir de agora surjam uns raios iluminados.
      Tu vais ajudar com certeza.
      Obrigada.

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    3. Olha, querida, escuta uma coisa que te diz uma pessoa mais velha: todos os dias são dias de luz e de sombra. Hoje era o dia em que nasceria quem nunca nasceu. É um dia que podia ser feliz e nunca chegou a ser. Cabe-me cobri-lo de flores, o melhor que eu puder. Mas só o tempo faz essa tarefa por nós. E eu já consigo, porque passaram muitos anos. Tu também vais conseguir, com toda a certeza absoluta.
      E sim, conta comigo.
      Sem agradecimentos, mas com um beijinho e colo e mimo e um abracinho apertado em xi-♥.

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