Os
dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia
dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
- Que
raiva ter esquecido o paiosinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria
definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com
ânsia para coisa alguma…
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
- Nem
para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…
A
lanterna vermelha do «Americano», ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos
e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
-
Ainda o apanhamos!
-
Ainda o apanhamos!
De
novo a lanterna deslizou, e fugiu. Então, para apanhar o «Americano», os dois
amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro,
sob a primeira claridade do luar que subia.
Carlos arrojara um grosso charuto, muito branco, odorado de eucalipto, fumado até à ponta da boca, um toco sem mais o que dele sorver. Embora João da Ega não o tivesse aspirado directamente, havia dele inalado alguns ventos e brisas, pelo que se sentia tão elevado quanto Carlos. Assim, apesar do que ambos consideraram um homérico esforço, era evidente, logo ao romper da corrida, que, àquele passo brando e manso, nunca apanhariam o
«Americano». Os cavalos galopavam mais velozmente do que os dois amigos, que não pareciam aperceber-se, ou sequer importar-se. Ao alcançarem a avenida 24 de Julho, viram-se atingidos em cheio por um cometa de faróis
de halogéneo, de nevoeiro, de médios e de máximos, que os receberam, estafados, alterados e suados — algo em parte revelado pelo tecido das casacas, fedendo. Aliviaram-se delas e de mais uns
quantos ares e líquidos, e seguiram para a Kapital. Entraram, toldados por jorros de luz, fumo e sons, que os penetraram, barbaramente, por todos os orifícios da cabeça. Carlos avistou Maria Eduarda, baloiçando-se em cima de uma coluna. "Ei, Cadu!", acenou-lhe ela. Tem bem a quem sair, pensou, lembrando-se de alguns relatos, mais ou menos impiedosos, provindos do seu pio avô, acerca de Maria Monforte. Um flash de luz e memória atinou-o dos parentescos que o uniam a ambas. Considerou, então, tomar a decisão da sua vida, abordando Maria
Eduarda para um tête-à-tête final, um bate-papo em sentido rigoroso, estrito e
estreito, fazendo o gostinho ao dedo daquilo que a pluma do Autor, efectivamente, sempre e desde sempre quis designar às Personagens. Também, quero lá saber, não vou ter filhos com ela,
senão aquilo era uma salganhada de parentescos lá em casa, os putos primos e
irmãos, primos de si mesmos e irmãos de si mesmos, como os
malucos. Por estas alturas da alta madrugada, Ega travava-se de irracionalidades com Genoveva, a senhora de maternal idade que ficou no rascunho d' "A tragédia da Rua das Flores", e que só
mais tarde iria revelar-se ser sua mãe.
O ano é 2008, a crise corrompe as
cabeças e rompe as calças, ninguém quer saber se
os amantes são irmãos um do outro ou mãe e filho, desde que liquidem os impostos e contribuam para o PIB — é deixá-los, isto pior não pode ficar e cada um
sabe de si. A própria Kapital esguicha os últimos suspiros, em fase pré-peido-mestre que enfrenta sem brio nem brilho. A noite da cidade prepara a sua transladação para Santos — precisamente Santos, logo ali ao lado —, de onde os dois amigos haviam rompido, no encalce do «Americano».
Consome-se ali, não obstante, toda a claridade do luar daquela noite.
Muito bom.
ResponderEliminarObrigada, Maria.
Eliminar... e mais um pouco, subiam a D. Carlos I, que era ainda príncipe quando eles começaram a correr atrás do «Americano», e iriam parar a S. Bento, onde João da Ega não deixaria de dar, aos deputados da nação, uma magistral lição da arte de bem orar a toda a sala (coisa de que tanto precisariam em 2008 como precisarão em 2016).
ResponderEliminarVotos de um óptimo 2016, sempre com esta inspiração magnífica, LB. :)
Ora, quem fala, Xilre :) Obrigada.
Eliminar(E eu, que já ia embalada com essa tua breve continuação? :))
O dom da oratória, no parlamento, ou fora dele, tem qualquer coisa de inato, mas que sim, poderia ser apurado com umas boas lições à Ega.
Um feliz 2016, todo azul :)
Tenho a certeza que Eca de Queirós teria gostado.
ResponderEliminarEu gostei muito!
Beijos lindinha:)
Que lisonjeiro, Impy :)
EliminarOlha, se não gostasse, tinha bom remédio: virava-se para o outro lado, ou escrevia uma farpa.
Beijos, miúda :)
Que nunca te falte prosa assim tão cativante.
ResponderEliminarbeijinhos, Linda Blue.
Generosidade tua, Mia :)
EliminarObrigada.
Beijinhos
Fantástico, Linda azul!
ResponderEliminarBeijos. :)
Obrigada, Maria Poesia :)
EliminarBeijos