30/01/2016

Braços de colo

Desculpe, nós estamos a fazer uma avaliação nutricional.
E pára. Fecha os olhos e fica, com eles fechados, a boca aberta, a frase em suspenso. Não há sequer uma reticência, é mesmo um ponto final. Gaga. Gaguíssima. Mas eu tenho o maior respeito e a maior admiração pelas pessoas gagas. A minha mãe ensinou-me que são pessoas superiormente inteligentes. Ainda por cima, sofrem de um handicap que tem consequências sociais e pessoais absolutamente dramáticas. Às vezes são tomadas como idiotas. Nunca caio na tentação de procurar completar-lhes as palavras ou as frases. Sei que o pensamento e o raciocínio, muito velozes, não acompanham o discurso, e isso ainda os barrica mais. 
Espero que ela retome, e ela explica, com mais duas ou três paragens semelhantes, que me oferece uma consulta de nutrição. Digo-lhe que tenho que tirar um café da máquina, explico o meu próprio drama pessoal,
É que é doida, peço-lhe café longo, dá-me um balde de café, peço-lhe café sem açúcar, dá-me um xarope, acho mesmo que não percebe nada do que eu digo.
Vejo-lhe a expressão divertida, a cara a relaxar, e seguimos juntas para o gabinete da avaliação, no ginásio.
A consulta demora cerca de vinte minutos. Ela parou de gaguejar no momento em que eu, ao atirar o copo do café para o caixote do lixo, lhe disse:
Então, vamos a isso, ou quê?
Pergunta-me o básico, e também qual é o meu objectivo, quando treino. Digo, como sempre, a verdade, que costuma saltar-me muito antes de alinhar raciocínios. Nem sequer são mais velozes do que a linguagem verbal. Simplesmente, só surgem depois de já ter iniciado as frases. 
Quero ter uns braços magros. Eu tenho os braços mais gordos do mundo.
[A minha amiga Preta, que também é quem, de uma forma profundamente heterossexual, conhece melhor o meu corpo do que até eu, já que mo massaja centímetro a centímetro, semanalmente, há três anos (o que já dá umas boas 156 vezes, contas feitas por alto), diz que as mães têm braços de colo, que são uns braços que se formam quando se espera pelo primeiro filho, com aquela paciência impaciente que, depois, se repete com todos os seguintes. E deve ser disso que eu sofro — braços de colo.]
É tudo o que eu quero. Não quero saber de coxas, de ancas, de barriga, de pernas. Os braços atormentam-me. 
Pergunta-me o que costumo comer, e sai-me uma lista absurda, embora verídica:
Comida vegetariana, muito peixe, principalmente salmão, sushi, iogurtes horríveis, sem sabor e sem açúcar, mas que eu gosto, fruta nas pausas, alface duas vezes por dia, e também bolachas, quando estou cansada do computador e não me apetece levantar da cadeira. 
Sou um beco sem saída, porque não há muito por onde começar a tesourar no meu esquema. Só se for nas bolachas. Não lhe falei na cerveja, mas porque me esqueci. De resto, não bebo o suficiente para que isso seja assinalável. 
Fiquei a vê-la afastar-se, quando fui treinar, as pernas muito grossas, andar de pé curto, passos pequenos — a personificação do dermatologista careca, ou do dentista com dentes amarelos. 
Mas eu tenho o maior respeito e admiração pelo trabalho de todas as pessoas, e as pernas grossas dela não me irão impedir de seguir o regime que me prescreveu, com vista à fabricação de uns braços magros — apesar de todos os colos.

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