Começo o treino por duzentas braçadas de remo, mil metros de ergómetro, que me fazem atravessar o Tejo na minha imaginação, mas que, na realidade, não permitem que saia do mesmo recanto, sentindo-me uma esfregona extremamente sensual, já que me esqueço sempre de amarrar o cabelo antes de começar aquela luta.
A família do senhor da mercearia continua a ocupar bastante espaço, designadamente do meu campo visual. O filho, sendo o mais gordo dos três, arma-se em treinador da mãe, laça-lhe a cintura com um elástico, manda-a avançar, enquanto prende as duas pontas com as mãos, e eu só vejo a criatura transformada num animal de tracção, sob as ordens do rapazola que brotou no mundo. Aquilo é coisa para me deixar passível. Mas avanço nas braçadas, porque o meu objectivo é atravessar o rio, há um prenúncio de morte e novos ricos são má sorte.
O homem pára de treinar, encosta-se à parede que está mesmo à minha frente, e fica, de olhar fixo, a ver-me cumprir os mil metros. Estou nos 360 e já o deito pelos olhos, apetece-me bradar-lhe que vá à merda.
Mal acabo, fujo para a outra sala, onde cumpro os mínimos, no meio de uma multidão que não me chateia. Já estou a alongar, quando o homenzinho reaparece no meu pesadelo, e então evado-me para o balneário, onde me julgo a salvo.
Só mulheres, posso despir-me, andar em trajes menores ou maiores, que ninguém me virá importunar. Com um cacifo ao lado do meu, uma senhora despe-se, queixa-se que está exausta e vai para o duche. Já lá está há uns minutos quando eu inicio o meu, e saio ainda antes de ela acabar o dela. Devo lavar-me muito mal, ou há qualquer coisa que escapa no meu banho e que faz parte do dela. Estou a começar a vestir-me quando ela surge, veste umas cuecas pretas de renda que lhe estão minúsculas, e tenho a rainha do pintelho pela frente: uma coisa perfeitamente gigantesca, aparentada com Gina, que fez capas de revista nos anos 70. De chofre, dá-me um elogio ao corpo. Não falou em pernas, em rabo, em mamas, em barriga, em coxas: generalizou, meteu tudo no mesmo saco, pacote (salvo seja) completo, um comentário redondo como eu não sou. Ri-me, agradeci, disse-lhe que se tratava de um exagero (porque foi, objectivamente), e que faço muitos "disparates" que não devia. Pensei mesmo em perguntar-lhe se não devia mudar de graduação, mas, sendo uma pessoa mais velha (uns oito, dez anos) do que eu, travei-me, com receio de a ofender. E ela, inamovível, insistiu. Falei-lhe dos filhos, da gula, da determinação em ir ao ginásio três vezes por semana (na verdade, vou só duas, há muitas semanas), só faltou dizer-lhe a verdade: que, se não fosse parva, cagava para isso tudo, só comia o que me desse no ginete, e era muito mais feliz assim. Mas ela repetiu, e disse pela terceira vez.
E eu saí do balneário com a leve sensação de que o senhor da mercearia é um pobre bem intencionado, ao pé de outros gaviões que para aí andam, disfarçados de mulher pintelhuda.
Nos balneários dos ginásios vive-se num mundo à parte.
ResponderEliminarSurrealista.
EliminarE já ponderaste fazer um pirete, discreto, ao merceeiro?
ResponderEliminarQt à pint***...pois, n sei q conselho dar ;)
E ele não o confundirá com um convite?
EliminarTalvez um laser... :D