Nunca como hoje me pareceu tão metafórica esta frase.
Todos estes anos, desde que a canção existe (1990), entendi-a ao pé da letra, ou melhor, desentendi-a, uma vez que nem sequer concordava com ela. Não só nunca fui grande fã do Rui Veloso — demasiado monocórdico e monótono, e mais-do-mesmo —, como também por me criarem uma certa azia algumas passagens usadas na dita canção. A saber:
1 - a saliva que eu gastei para te mudar — para além de não ser bonita a imagem mental de um homem a salivar-se todo, ainda temos, da sua parte, a intenção parva de o fazer para nos mudar. Ora, diz-me a lógica da batata que, amigo, se a queres mudar, é porque não gostas dela assim, e, se não gostas dela assim, também não lhe serves à justa (imbuída de justiça) medida, que é a única tolerável nestes assuntos cardíacos. Tipo axioma, topas?
2 - mesmo sabendo que não gostavas — vá lá fazer chantagem emocional para a barra da saia da senhora sua mãe que o ature e o pôs no mundo. Se sabias que ela não ia gostar, não o fizesses.
3 - empenhei o meu anel de rubi — tudo depende se se trata de um cachucho (safa-te do mamarracho, nem que seja com a desculpa que é para levares a gaja ao Rivoli) ou de um princesa de gales. Ainda assim, questiono-me se os advogados já estavam tão aflitos de trabalho em 1990 (esta é muito à frente), que precisassem de empenhar o anel para levar uma mal-agradecida ao concerto.
4 - não fizeste um esforço para gostar e foste embora — sincera, a tipa. Mal agradecida, mal educada, mas sincera. Encontram-se várias assim, em zonas periféricas. Todas elas sem uma ruga e sem úlceras de estômago.
Mas acho que não era a isto que eu vinha.
Não se ama alguém que não ouve a mesma canção — isto soa-me mal, como uma cantiga mal cantada. Não é quase indiferente que um ouça Bach e o outro Metallica? Não, lá estou eu nos extremos. Mas não é irrelevante que um ouça U2 e o outro Bryan Adams? É.
Não se ama alguém que não lê os mesmos livros.
Não se ama alguém que não nos lê.
Ou melhor, não se ama alguém que, apesar de pegar nas nossas palavras com os olhos, não lê nada do que escrevemos. Que não nos sabe ler, olhos adentro, quanto mais o que pomos no papel, mesmo que não seja numa folha em branco.
Não se ama alguém que não entende nada dos nossos gatafunhos, ainda que eles estejam em letra bonita de computador. Nem os nossos textos acabados, que nunca estão, quanto mais os nossos rascunhos.
Não se ama alguém que, na melhor das hipóteses, sabe ver que escrevemos sem erros. Qualquer criança, no último ano do primeiro ciclo, deveria saber escrever sem erros. Isso põe-nos ao — altíssimo, sem ironia — nível de uma pessoa nascida há nove anos, acordada para as letras há três, a nós, que andamos nesse desacordo há séculos.
Não se ama alguém que não nos ama.
Porque essa do amor não correspondido é tão bonita, é tão trágica, é tão próxima do épica — por ser desses fracos que reza a História, em mil Ave-Marias —, mas é número que (nem) eu (nem ninguém que o mesmo tempo que eu já viveu) já não papo. O amor exige uma reciprocidade que, a não existir, ó: a barra da saia da mãe — ou, no limite, um cão abandonado — cumpre na perfeição.
Cara Linda,
ResponderEliminarEm 1990 não lhe fazia nenhum desses reparos. Em 2015 também não. Não se ama quem não ouve a mesma canção. Não há estrelas no céu. Não me mintas. Já não há canções de amor. Podia ser um peixe na maré, Nadando sem passado nem futuro.
Acima de tudo, sou cavaleiro andante...
Um beijo,
Outro Ente.
Caro Outro Ente,
EliminarOlhe que eu já era bem fininha quando apareceu o Chico Fininho. Sou tão antiga quanto isso. Por esse motivo, não deveria ter a sensibilidade de uma garota, mas tenho os meus dias. E o cavaleiro andante é sempre aquela que me faz quebrar. Hoje estou assim, capaz de ouvi-lo até amanhã.
Um beijo para si,
Linda Porca.