Não aconteceu nada. E, no entanto, aconteceu um mundo inteiro.
Já outro dia fui à pressa. Tinha a desculpa imperdoável de ser dia da mãe e de ser mãe. Tinha que correr, vê-la a correr, sair a correr, ir a correr, almoçar com eles todos, que são tantos. Ser mãe de um grupo grande e filha de uma mãe pequenina, é muitas vezes mãe, uma multiplicação que nem sempre sei resolver. Corro para a mãe, deixo filhos para trás, abandonados na roda, corro para os filhos, morro-me de mãe, toda muito órfã de mim. Já não sei para que lado me virar, estou virada do avesso, de coração à mostra. Nem já as costelas o protegem, mas também - até me faz pena, coitado -, nem delas deve precisar, pois nem sempre o sinto pulsar.
Ainda me doía uma lágrima que chorei sem ser minha. Estava sentada, diante do monitor, e ele em pé, ao meu lado, a ler-me. Havia um silêncio sem querer, que se instalou por segundos e séculos, por isso olhei para cima e vi-lhe os olhos cheios daquela transparência que parecia mesmo um lago. Encostei a cabeça ao peito dele e começaram a cair-lhe perolazinhas de cristal, numa enfiada de colar perfeito. Nesse momento, houve uma que caiu na minha testa e desceu. Passou o início da cana do nariz e continuou o percurso dela, pelo interior do meu olho. E então, saiu-me do olho, exactamente por onde saem as minhas, feita lágrima.
Foi muito salgado. Nunca tinha chorado uma lágrima que não fosse minha, e fiquei a saber que dói o dobro.
Hoje fui lá, outra vez à pressa. Tinha a desculpa perdoável de ter um encontro marcado a uns quilómetros dali, para comprar um livro para uma pessoa querida. Comprar um livro é um grande pretexto. Para uma pessoa querida é um perdão maior ainda, faz-se enorme, gigante e intransponível, ninguém contesta.
Tudo me anda a servir de motivo, e agora até choro lágrimas que não são minhas. Caminho para lá, mas vou a andar para trás. Chego e mal me sento, tenho que me ir embora, gostava tanto de saber fugir. Estou desde os quatro anos a planear fugir de casa e nunca soube fugir como as outras pessoas. Há pessoas que sabem fugir tão bem que, não fosse eu ser assim tão e tão pouco forte, e também aprendia, sem chumbos nem notas baixas.
Vieram entregar-me a prenda da mãe para os filhos, que todas as mães estiveram a fazer. A minha fez duas, uma para cada filha. Com as mãos magrinhas, as unhas bonitas, entrançou pano cor-de-rosa e fez-me uma prenda de mãe, mas a pressa que me mata não permitiu que a recebesse no dia da mãe, e isso matou-me a mim.
Quando fugi outra vez - já morta -, daquela maneira que não sei fazer, trazia a trança entrançada nos dedos e a perolazinha de cristal que não era minha ainda a doer.
As que caíram a seguir, numa enfiada de colares imperfeitos, eram todas minhas.