21/02/2016

Branco-azul

O céu estava branco-azul, exactamente como o nome que tem a tinta que pintou as paredes da minha casa. Não era azul-céu, porque o azul-céu não grita assim.
No final da autoestrada, cinco carros misturados, gritos de lata quando há gente que não se magoou. 
Entrei sozinha e já não sabia entrar assim. Havia uma rola a arrulhar e uma gaivota a gritar — diz que as gaivotas grasnam, guincham, pipilam, mas aquela gritava, tempestade no mar, há uma criança no mar, e foi um medo. Já estava azul-cinzento, aquele céu de lá, junto ao mar de chumbo que havia de estar, de onde a gaivota dos gritos fugiu.
Encontrei-a de branco, lado a lado com o senhor que parece o meu pai. Hoje vi-lhe os pés e fiquei triste, porque percebi que a semelhança é a aproximação mais frágil daquilo que nos pode matar as saudades, mas não mata. Os pés dele são uns pés feios, e o meu pai tinha uns pés bonitos. Pareciam feitos de seda. 
Se calhar, eram.
Uma mulher gritava aiaiaiaiaiaiaiai, a este ritmo, sem respirar. E isso cortou-me a mim a respiração. Depois punha-se em pé e gritava mais aiaiaiaiaique-eucaio e sentava-se. Sei que não se calou nunca mais, porque continuei a ouvir-lhe os gritos. 
Nós duas, em silêncio, quando ficámos sós e rodeadas de pessoas e da mulher que gritava. Só as nossas mãos gritaram outra vez tua. E os nossos olhos também. 
Saí e já não havia azul. 
Deixei de ouvir os gritos da mulher que nunca mais se calou, os gritos da gaivota que fugiu do chumbo, mas sei que choveu desalmadamente quando voltei para o branco-azul das minhas paredes.

4 comentários:

  1. Nossa Blue,

    Não tendo nada a ver, este teu episódio fez-me lembrar as visitas à minha avó Irene, na Alameda.
    Uma vez fiquei lá toda a tarde à conversa com o actor Rui Mendes, cuja mãe era companheira de quarto da minha avó, Irene. Ambos agarrados às mãos transparentes das nossas queridas velhinhas. Cheirava a bolacha Maria naquele quarto e o chão estava sempre tão encerado.

    Desculpa vir para aqui com lamechices, mas fizeste-me lembrar.

    A minha vénia, Azul :)

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    1. Tem tudo a ver, Shark. São transparentes, aquelas mãos.
      Também não encontro lamechices no teu comentário, talvez porque eu própria...

      Vai um beijo para ti, hoje :)

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  2. Só consigo ouvir os gritos mudos.

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    1. No meio daqueles todos, ouvi alguns, também.

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