16/10/2015

Nunca fujas ao teu destino

Havia um casal de velhotes que frequentava o mesmo metropolitano que eu, num pequeníssimo percurso de uma só estação. Já vinham no comboio quando eu entrava, e apeávamo-nos juntos na paragem seguinte. Eram, evidentemente, indigentes, a avaliar pelo estado de sujidade dos cabelos e das roupas de ambos, e pelo cheiro que exalavam. Paradoxalmente, o cabelo dele estava sempre primorosamente penteado. Usava uns óculos de lentes verde-garrafa, muito grossos, tinha os olhos colocados em alvo, e só olhava em frente. Eu evitava o mais que podia ficar à frente dele, porque rapidamente percebi que ela não gostava. Ela passava o minuto e meio que dura o percurso entre estações a ajeitar-lhe o cabelo com as mãos, e ele, ao fim de duas ou três passagens dos dedos sujos dela no cabelo sujo dele, protestava, aborrecido e sujo. Falavam baixinho um com o outro, mas nunca em surdina. Quando chegavam ao torniquete de saída do metro, invariavelmente alguma coisa corria mal e ela praguejava aos berros, dizendo palavrões. Era a altura em que eu mais evitava estar por perto. Ela não gostava de mim, e isso era mais do que evidente. Devia ser qualquer instinto animal que lhe provocava repulsa. Eu também não gostava deles, de ambos. O cheiro azedo, a tabaco, misturado com lixo, era nauseabundo. Tomava conta da carruagem inteira, do meu nariz e de todos os meus sentidos. O meu dia estava a começar e ainda levava comigo vestígios de banho e roupa lavada. Quando ambos desapareciam na direcção da estação dos comboios, parava a minha apneia e respirava fundo. Lembrei-me deste casal, hoje. Eles eram a personificação do meu lema Nunca fujas ao teu destino. Eu estava na estação, à espera que o metro chegasse, e via-os, através dos vidros, quando ele chegava. Desviava caminho, para entrar por outra porta e não irmos ali, os três, em pé, quase colados, eu a sentir aquele odor intenso a desleixo, pelos meus parâmetros preconceituosos de pessoa perfumada, eles a sentirem o limão do meu perfume como, quem sabe, sinal de camuflagem da falta de limpeza ou de vergonha. Sempre me pareceu que, mudasse de porta de entrada, mudasse de carruagem, ou porque eles mudassem também, ou porque eram não um, mas vários casais, todos iguais, a verdade é que se dava a fatalidade de só faltar esbarrar-me com eles todas as manhãs. E ter de percorrer aquele minuto e meio com a respiração suspensa e, também eu, com os olhos em alvo no diagrama da rede, falsamente interessada em estudar um labirinto que nunca iria, como não vou, decorar — mas que me salvaguardava da possibilidade de a velhota olhar para mim, suspeitar que eu podia ter outro interesse no seu macho que não o de fugir a sete pés, e vociferar, como de costume, Lá está ela!.
Nunca fujas ao teu destino. Aqueles dois estavam-me na sina, dia após dia, durante anos, desse eu as voltas que desse ao labirinto do diagrama da rede, entrasse eu em que carruagem entrasse. Acabei por me conformar com a fatalidade daquele encontro diário, metáfora do que não tem remédio — remediado está.

4 comentários:

  1. O destino tem razões que a razão não explica :)
    Muito cinematográfica a sua descrição. Aqui, no conforto do meu sofá, senti o cheiro a desleixo, o olhar penetrante, a impotência face a circunstâncias das quais não conseguimos fugir. Dava um filme - O comboio do destino.

    Um beijinho, Blue

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    1. Bom dia, Miss Smile :)
      Precisava de ser um filme em várias dimensões, para reproduzir o odor, que era quase a personagem principal :)
      Mas sim, um comboio cheio de significados.

      Um beijinho, um sábado feliz :)

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  2. Anónimo17/10/15

    Linda, bom dia.
    Essa tua descrição leva-me a uma viagem no metro do Porto, não com um a entrada não de uma casal, mas de um grupo, cujo estado de limpeza, em nada foge ao desleixo acima descrito. Felizmente saíram quando se aperceberam da chegada do "fiscal" dos bilhetes. A viagem foi muito curta, caso contrário, não iria conseguir um apneia prolongada. Mas o cheiro ficou. Imagino, agora, todos os dias, o encontro talhado nas linhas de um comboio subterrâneo.
    Bom fim de semana.

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    1. Era uma espécie de karma, que me fui habituando a aceitar e, até, a tirar partido dele: oferecia aquele bocadinho em sacrifício pela saúde dos meus :)
      Bom fim-de-semana, Mia.
      Beijinhos

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