16/10/2015

Maria — Guerra

Foi por acaso que descobri que ainda lê. Achei que, por ver mal, por não ter memória recente quase nenhuma — na verdade, não tem memória imediata. Não que pergunte a mesma coisa muitas vezes seguidas, mas o mesmo ar de espanto, quando ouve a mesma coisa duas, três, dez vezes, denuncia que não fixa nada. Pode ser só falta de ouvido. Pode ser só desinteresse. Não quero saber, não por não querer, mas porque, eu própria, às vezes, tantas vezes... e, se há coisa que a vida me ensinou nos últimos tempos, é que não brigues com a genética; tens uma guerra perdida —, já não lia, despedida que havia feito de todos os clássicos, devoradora que foi de toda a literatura que eu conheço, e especialmente da que eu nunca ouvi falar. Levava-lhe revistas de mexericos, via-a folheá-las, tão bonito, tão bonita, a achar toda a gente bonita (só as pessoas bonitas acham toda a gente bonita), a pousar para o lado, aborrecida. Até que um dia apontou para umas letras muito pequeninas e disse: Olha, este diz que começou a fazer a barba aos 12 anos, e eu rebentei de orgulho. 
Ainda lê. Ainda memoriza, por segundos que seja, o que leu. Ainda tem sentido crítico. 
Passei a levar-lhe revistas de informação e a agenda cultural.
Olha o nome desta: Maria do Céu Guerra. Maria...
E dá uma gargalhada. A mesma pessoa que me ensinou todas as metáforas, por toda a vida me ter falado por elas, mantém a capacidade de leitura e segunda leitura das palavras todas. Maria. E do Céu. E Guerra — uma contradição, que pode ser um eufemismo daquela pessoa, uma metáfora também, uma alegoria, uma parábola, uma antítese, uma ironia. 
Acabadinha de rebentar de orgulho outra vez, chamei a enfermeira e pedi-lhe que não deitassem fora as revistas da minha mãe.
Sabe, ela lê,
Sabe, ela apreende,
Sabe, ela tem sentido crítico.
~
Preciso, de forma mais ou menos metafórica, das metáforas da minha mãe. 


8 comentários:

  1. Permanecerão sempre metáforas do coração que contam a vossa história.

    Um beijinho, querida Blue

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    1. Intactas, Miss Smile.

      Um beijinho também, minha querida.

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  2. Opá quase que me rebentaste o saco das emoções aqui no meio desta gente toda. Não se faz a meio do dia. Aliás, devia se fazer mais vezes e com todos a olhar e a sentir. O mundo, esse, seria bem melhor...Obrigada pela partilha.

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    1. Ohhh :)
      Devo pedir-te desculpas. Mesmo, Sofia.
      E agradecer-te eu.
      Beijinhos

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  3. Momentos muito difíceis,muito complicados...
    Nada fácil de aceitar ( tb vivo esses problemas ) só nos resta estar muito presentes e ter muito carinho.
    É bom ter irmãos para poder ir dividindo esses momentos.
    Apenas o nosso dever e obrigação.

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    1. Sim, tenho uma. E não tenho ilusões que, para ela, ficou a pior parte de tudo isto.
      Também sei que não faço nada de extraordinário, ou nada que um filho normal não faça.

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  4. Anónimo16/10/15

    Linda, as emoções que transmites e que vives, parecem nossas também.
    Um beijinho,
    Mia

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    1. Obrigada, Mia. As pequenas vitórias (ou melhor, não derrotas) da minha mãe, são um motivo de alegria tão grande. Quase iguais aos avanços na evolução dos filhos :)
      Um beijinho para ti. Boa noite.

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