08/10/2015

Mãe ao contrário

Esta coisa de ser filha é um desassossego constante. Não conheço tarefa mais árdua e gratificante, logo a seguir a ser mãe. 
Chegar e ver dois dedos magoados, nas minhas mãos tão amadas, tão cuidadas, tão protegidas.
A minha mãe tem dois dedos partidos.
Logo o alarido, o finca-pé, chamem o médico, ó mãe, ó mãe,
Ó mãe, dói-lhe? Ó mãe, quando é que isto foi? Ó mãe, como é que fez isto?
Ai, que não, que não está partido.
Fique descansada.
O coração em disparos aleatórios, parece um atirador furtivo — é ao calhas, quando lhe apetece, sem alvo definido.
~
Veja a mão do seu filho. Entalou-se numa caixa de madeira cheia de blocos de construção.
E é normal, uma caixa de madeira num jardim de infância, com peso suficiente para fazer este estrago no dedo de uma criança?
O dedo não está partido, mãe.
[Detesto que me chamem mãe daquela maneira. Mania de enfermeiras e educadoras, quando está para acontecer ou já aconteceu alguma coisa que pode doer. Não me chamem mãe — que isso me dói —, a não ser que me tenham desadentrado.]
Fique descansada.
O coração a saltar pela boca, a ficar nas mãos, caído aos pés, todas as metáforas possíveis, mas a realidade a suplantá-las a todas.
~
Preferia que tivesse sido comigo. Eu sei entalar-me e ficar com os dedos inchados e roxos e não me doer tanto.
~
Preferia que tivesse sido comigo. Eu sei entalar-me e ficar com uma unha negra, depois ela cair e não me doer tanto.
~
Tratei-lhe das mãos e deixei-lhas mais bonitas.
Agora já não doem os dedos. 
Já não me dói nada.
~
Tratei-lhe aquele dedo, a unha cresceu nova e bonita.
Agora já não dói.
Já não me dói nada.

4 comentários:

  1. Anónimo8/10/15

    Ternura pura.

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    1. É tudo o que temos para nos dar, neste momento.

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  2. Anónimo8/10/15

    Linda, como sempre emoção em todas as palavras. Agora, solidária, com essa da " mãe", fico fula, então, nas vacinas, ou outro qualquer sítio, apre, a minha filha tem 23 anos. Só ela tem direito àquele chamamento.
    Boa noite.
    Beijinhos,
    Mia

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    1. Já prefiro que me chamem "minha senhora", ou coisa que o valha.
      É verdade, só eles têm esse direito. E o tom é sempre outro. Sobretudo, porque não nos ralham nem nos cobram alguma vacina que não está em dia porque nos escapou.
      Boa noite, Mia.
      Beijinhos.

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