13/07/2015

Endemoniada

Ia eu a pensar no quão verdade é, que todas as coisas cómicas têm algo de trágico. Não consigo fazer o exercício ao contrário, e achar piada a tudo o que é trágico. Mas há situações em que os dois extremos se tocam tanto, que deixam de ser extremos, e entram em ciclo vicioso, turns around, comes around.

Saí de casa endemoniada, o que não é o mesmo que endiabrada. Endiabrada, era eu, quando ainda nem às portas do inferno tinha passado. Por isso, acho que a viagem correu mal. Não bati em lado nenhum, ninguém me bateu, mas mais valia. Teria parado, a bem ou a mal. 
Ia lavada, fresca e perfumada.

A casa estava a ser pintada por fora, toda branquinha, lavada de fresco, quase perfumada, e aquilo levou-me ao nosso Alentejo, onde as casas se caiam de novo todos os anos pelo calor, não fora o pintor ser um homem, de cigarro ao canto da boca, e por lá serem a 'nha Alcinda e 'nha Almerinda, de negro dos pés à cabeça — meias opacas e lenço na cabeça incluídos — que caiam as casas.  
Mas aquela porta nada tem de azul, igual à barra azul das casas do Alentejo, nem verde, igual à barra verde, nem amarelo, igual à barra amarela. Entro e envelheço. Não acho graça a nada, nem nada me acha graça. Há dias, como hoje, que nem a minha mãe. E nem sempre rejuvenesço quando saio.
A dos cem anos, que acha que Belzebu me inquina o sangue só de ali entrar, tolheu-me de ofensas — que me passaram ao largo, descontei até à percentagem de 99, e não cem porque ainda lhe faltam umas semanas para os fazer. Faço-lhe um desconto igual à idade, como aquela loja. 
- A esta, o amigo apanhou-a de jeito e encheu-a de pancada até ela se cagar. 
Isto poderia ser cómico, se não fosse a descrição, com resultado escatológico, de um crime tão grave. 
- Trazes o rabo de fora, e está todo sujo.
E sinto uma cauda pequenina, com ponta de lança, a serpentear-se-me para fora do vestido.
- Que nojo de cabelo, tão comprido, que não vê água para mais de seis meses.
É das minhocas, senhora, estou cheia de bichos, hoje — penso. Mas digo-lhe:
- Nunca mais lhe ofereço chocolate.
E ela cala-se, até eu sair. 
Saio e não rejuvenesço quando atravesso a porta. Tenho o diabo no corpo.
Hoje tenho o diabo no corpo. Só hoje.
Nada me parece comovente, nem tocante, nem enternecedor. Tenho o coração disparado — como depois do disparo do tiro, quando os atletas disparam para a meta —, a disparar em todas as direcções. Mentalmente, canto isto, em repeat, há dois dias seguidos:


Estou sem vontade de voltar para cá, nem para lá. 
Um dia fico lá. Já lá estou quase toda.



4 comentários:

  1. Só me apetece dar-te muitos, mas mesmo muitos, beijos.

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    1. Acredita que os recebi, ao ler o teu comentário.
      Obrigada, minha querida.
      Beijos, muitos.

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  2. Ó cara Linda,
    Até com mau feitio é divertida. O que me ri.
    Boa noite,
    Outro Ente.

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    1. Caro Outro Ente,
      Aquela senhora perdeu completamente o juízo. Eu ainda não ando com o rabo de fora, menos ainda sujo.
      Boa noite,
      Linda Porca.

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