31/07/2015

As coisas que eu vou desencantar ao baú... # 6

03.06.2009

A minha Zá

Entrámos para a sala de reuniões, pela enésima vez em quinze dias. Estamos a ficar fartos da cara uns dos outros. Hoje vamos desfazer o órgão para o qual fomos eleitos há seis meses. Era um órgão provisório, portanto, é natural que esteja no fim. Devíamos estar aliviados por isso, mas não há tempo para sentimentos. A seguir, vamos constituir o órgão definitivo, e esse tem um mandato de quatro anos para cumprir.

Despedimo-nos de forma mais ou menos formal, desejamos bons trabalhos a quem fica e agradecemos a quem não, e fazemos um intervalo para ponderar quem vamos escolher para presidente do órgão definitivo. Saímos da sala, ficamos a conversar cá fora, e nota-se uma certa tensão no ar, que eu não sei de onde vem — se do fim do trabalho de um lado, do começo do trabalho do outro, do momento de ponderação a que nos comprometemos, ou só porque nos vamos separar. As separações custam sempre. Mesmo esta.

A professora Zá é das pessoas mais extraordinárias que eu conheço, sem reservas. É viúva de um patife que deu um tiro na cabeça diante dela e do filho de ambos. Venceu um cancro da mama que mais tarde ou mais cedo a vence a ela. De vez em quando, aparece com o braço metido na manga elástica. Nunca lhe ouvi um ai, um lamento, uma recusa a um esforço, mesmo físico, que sabe que não pode suportar. Trabalhamos juntas há anos, mas ela trabalha desalmadamente. Ela como directora da escola, depois vice-presidente do conselho executivo, agora nada. Eu só ando ali a passeio, estou de passagem. 

Falamos com os olhos, como as amigas a sério. Ela insiste em tratar-me pelo título académico. Eu trato-a por Zá, mas refiro-me sempre a ela por professora Zá. E dá-me os abraços mais gordos e mais saborosos, por serem gordos. Ela é gorda, e eu adoro-a por isso. Estou-lhe sempre a dizer que não está nada gorda. Mas está cada vez mais gorda.

Acabei de saber que a directora do agrupamento, recém-eleita, amiga de longa data, companheira de conselho executivo, não a escolheu para vice-directora. Perguntei a uma, primeiro, e ela deu-me uma resposta institucional. Depois perguntei à minha Zá. E ela deu-me a mesma resposta, automaticamente, muito explicada, os olhos a entrarem dentro dos meus, os meus a escancarar sem acreditar.

A minha querida está a olhar para mim com esses olhos tão grandes assim...

É que estou a olhar para os seus e aquilo que me diz não é o que lhes leio 

E os dela cheios de água,

Já nos conhecemos há muitos anos

As minhas mãos na cara gordinha dela.

Já passámos tanto juntas. O ano passado andámos a arrastar um monstro de 900 quilos, com mais duas almas penadas, no recinto do recreio, porque nos convencemos que estava uma criança lá debaixo. Aquilo moveu-se uns três milímetros — ou nenhum. Depois de verificarmos que não estava, sucumbimos aos nervos, sentámo-nos num banco, lado a lado, como duas crianças assustadas, e chorámos juntas.

As amigas são assim. Falam com os olhos. Choram juntas. Se não fazem estas duas coisas, pelo menos uma vez na vida, não são amigas.



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