A
minha Zá
Entrámos para a sala de reuniões, pela enésima vez em quinze
dias. Estamos a ficar fartos da cara uns dos outros.
Hoje vamos desfazer o órgão para o qual fomos eleitos há seis meses. Era um
órgão provisório, portanto, é natural que esteja no fim. Devíamos estar
aliviados por isso, mas não há tempo para sentimentos. A seguir, vamos constituir o
órgão definitivo, e esse tem um mandato de quatro anos para cumprir.
Despedimo-nos de forma mais ou menos formal, desejamos bons
trabalhos a quem fica e agradecemos a quem não, e fazemos um intervalo
para ponderar quem vamos escolher para presidente do órgão definitivo. Saímos
da sala, ficamos a conversar cá fora, e nota-se uma certa tensão no ar, que eu
não sei de onde vem — se do fim do trabalho de um lado, do começo do trabalho do
outro, do momento de ponderação a que nos comprometemos, ou só porque nos vamos
separar. As separações custam sempre. Mesmo esta.
A professora Zá é das pessoas mais extraordinárias que eu
conheço, sem reservas. É viúva de um patife que deu um tiro na cabeça diante
dela e do filho de ambos. Venceu um cancro da mama que mais tarde ou mais cedo
a vence a ela. De vez em quando, aparece com o braço metido na manga elástica. Nunca lhe ouvi um ai, um lamento, uma
recusa a um esforço, mesmo físico, que sabe que não pode suportar. Trabalhamos
juntas há anos, mas ela trabalha desalmadamente. Ela como directora da escola,
depois vice-presidente do conselho executivo, agora nada. Eu só ando ali a passeio, estou de passagem.
Falamos com os olhos, como as amigas a sério. Ela insiste em
tratar-me pelo título académico. Eu trato-a por Zá, mas refiro-me sempre a ela
por professora Zá. E dá-me os abraços mais gordos e mais saborosos, por serem
gordos. Ela é gorda, e eu adoro-a por isso. Estou-lhe sempre a dizer que não
está nada gorda. Mas está cada vez mais gorda.
Acabei de saber que a directora do agrupamento,
recém-eleita, amiga de longa data, companheira de conselho executivo, não a
escolheu para vice-directora. Perguntei a uma, primeiro, e ela deu-me uma
resposta institucional. Depois perguntei à minha Zá. E ela deu-me a mesma resposta,
automaticamente, muito explicada, os olhos a entrarem dentro dos meus, os meus
a escancarar sem acreditar.
A minha querida está a olhar para mim com esses olhos tão
grandes assim...
É que estou a olhar para os seus e aquilo que me diz não é o que lhes leio
E os dela cheios de água,
Já nos conhecemos há muitos anos
As minhas mãos na cara gordinha dela.
Já passámos tanto juntas. O ano passado andámos a arrastar
um monstro de 900 quilos, com mais duas almas penadas, no recinto do recreio,
porque nos convencemos que estava uma criança lá debaixo. Aquilo moveu-se uns três milímetros — ou nenhum. Depois de
verificarmos que não estava, sucumbimos aos nervos, sentámo-nos num banco, lado a lado, como duas crianças assustadas, e chorámos juntas.
As amigas são assim. Falam com os olhos. Choram juntas. Se
não fazem estas duas coisas, pelo menos uma vez na vida, não são amigas.
:) a amizade precisa de pactos de sangue :)
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