Revista Happy, Julho de 2015, p. 51
Ofereceram-me uma revista generalista e eu li-a.
Adoro trapos e sapatos, mas os meus olhos detiveram-se nestas bonecas. São feitas por encomenda, e têm as mesmas características que a menina que as há-de receber. Assim, se tiver uma mancha na pele, a boneca também tem, se for cega, a boneca também é, e assim sucessivamente.
Eu faço colecção de bonecas.
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Já não é a primeira vez que vou a entrar ao portão e já vou arrependida de ter ido. Com medo, não sei do quê. Uma intuição qualquer me diz que vou ver o que não quero ver. Assim que entro na sala, a que tem cem anos grita-me Entras aqui e ficas com o sangue inquinado, como Belzebu!
Verifico que estão a fazer uma actividade. Jogam uma bola de esponja de mão em mão. Não quero ver aquilo. Encosto-me à parede inversa, fecho os olhos, que ardem com duas brasas incandescentes cá dentro, e engulo litros de saliva, até me afogar. Quando a revolta daquele mar me devolve à Terra, abro os olhos e verifico que a minha mãe não está a participar na actividade, por absoluto desinteresse. Mas eu encho-me de orgulho nela, apetece-me cobri-la de beijos pequeninos e cubro. Aninho-me a ela na poltrona e ficamos a observar os velhotes, a brincar com uma bola. A minha mãe muda de planeta e eu também, mas ela vai para um, lá muito longe, e eu vou para outro, cá mais em baixo.
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Gostava de ter uma colecção de bonecas que os representasse.
Há uma senhora, sentada numa cadeira de rodas, que é cega de um olho, está sempre calada, e usa um colar de pérolas, com duas voltas, enormes.
Há uma outra que usa saias e blusas de padrões florais e garridos, sempre, sem excepção, descombinados. É capaz de vestir uma saia de ramadas castanhas e uma blusa de flores lilases e verdes. E sorri para mim, de cabeça baixa.
Há uma senhora que não tem pernas a partir do joelho, os braços tremem e tem a cara mais bonita de todo o lar, se eu conseguisse deixar de ver beleza na minha mãe.
Há uma senhora que passa os dias a dar ordens aos outros todos e chama às outras senhoras avozinha e aos homens avozinho.
Há uma senhora que se arranja todos os dias como se fosse para uma festa: fato, brincos e pulseiras. Começa todas as frases e não acaba nenhuma, porque se enrola em monossílabos. E dá-me beijinhos de cada vez que passa por mim, e passa por mim cinco, dez vezes, por cada bocado que ali vivo. Esta coisinha, diz, quando me prende a cara entre as mãos.
Há uma senhora que fala ininterruptamente. Nunca a vi calada. Imagino que nunca se calará.
Os homens dormem, abandonados.
Gostava de ter uma colecção de bonecas deles todos, antes que seja impossível fabricá-los tal e qual como são hoje.
Mas ao escrever sobre eles já os salvou, por momentos, da voragem do tempo, que tudo muda e tudo leva. Escrever é também isso. Preencher vazios.
ResponderEliminarUm beijinho, querida LP :)
E uma libertação muito grande, quanto mais não seja, minha. Posso viajar para onde quiser, muito mais do que através da escrita.
EliminarMinha querida Miss Smile, outro para si :)
Eu nunca gostei de bonecas, LP, mas essas que descreves, estão num patamar diferente.
ResponderEliminarBeijinhos e um resto de bom dia.
Eram a minha perdição :)
EliminarMesmo adulta, já comprei bonecas para mim. Mas a colecção é mental, é impossível fazer uma.
Estas são especiais.
Beijinhos, um resto de dia feliz para ti, Mia.