27/07/2015

Preta

Não me assumo como pet lover — pelo menos, naquele sentido mais enfático do termo, em que os animais vêm acima de todas as coisas na hierarquia sentimental, sobrepondo-se, mesmo, às outras pessoas. Também eu acho que existem pessoas que merecem menos viver do que a maior parte dos animais (tendo em conta que todo o mal que eles possam fazer tem como premissa e justificação a sua irracionalidade), mas também não considero que a vida de um animal se deva poupar a qualquer custo, nomeadamente se isso implicar perigo para as pessoas, ou para os outros animais.
(Além disso, quem me tira a bela chuleta do boi, tira-me tudo.)

Estou sempre a dizer isto, mas gosto tanto das minhas gatas, tenho tanto medo que elas me morram um dia, que, se calhar, até sou pet lover, do género não assumida — que são as piores, em qualquer tendência, vocação, missão e, pronto, fundamentalismo.

Tenho uma gata desconfiada, nervosa e, em última análise, agressiva. A outra é mansa como um anjo (se for possível imaginar um anjo-gato, é aquilo), mas transfigura-se em gato-diabo quando se apanha no veterinário.

Quando a Mel, meu anjo, foi esterilizada, e por ter sido necessário ir mudar o penso da cirurgia umas quantas vezes, aconteceu, de uma delas, eu estar na sala de espera com ela e terem entrado duas senhoras com uma gateira. Lá dentro, traziam um gatinho pequeno e preto, que tinham encontrado na rua, a tentar meter-se no motor do carro de uma delas. Calculei-lhe a idade para sete semanas, mas a vet disse quatro. As senhoras só queriam arranjar-lhe dono e ir-se embora. Nenhuma das duas podia ficar com ele, uma por ter um cão mata-gatos, a outra por já ter um gato e viajar com uma frequência tal que um gato já era igual a problema, quanto mais dois. Eu também não posso. As minhas gatas não se dão uma com a outra e isso cria dificuldades na partilha dos espaços. Mais um gato em casa, mais uma despesa, mais uma logística impossível. Assunto fora de questão.

Pelo telefone, tentei, por um lado, e elas, por outro, arranjar um dono ao gato. As duas respostas positivas que nos deram, uma a mim e outra a elas, ambas queriam gato, macho. A veterinária tirou-o da gateira, pô-lo no chão e imediatamente ficou claro para todas que havia qualquer coisa que não batia certo com o andar dele. Pegou-lhe, observou-o, e declarou, impávida, aquele que era o primeiro entrave a uma esperança de vida: É uma menina. Partiu-se-me o coração. Uma menina. E uma menina doente. Um atropelamento ou uma queda de muito alto provocaram-lhe danos na coluna vertebral permanentes. Uma pata de trás morta. Coxa para sempre e, eventualmente, esse sempre ser muito breve.

Se não se arranjar dono, vamos ter que a pôr "a dormir".

Esta é a rotina num veterinário. Não é preciso vir a Câmara e levar os animais que ninguém quer para o canil/gatil. Depois de abandonados, há quem decida o seu destino assim, assepticamente.

Sentia-me entre a espada e a parede. Não posso ver crias de coisa nenhuma, que me derreto e perco a capacidade de fazer raciocínios lógicos. Naquele momento, já deveria estar a adoptá-la no coração, porque lhe pus um nome, mentalmente: Preta. Se ficares comigo, ficas Preta. Este foi também o momento em que tive que decidir, em poucos minutos, o futuro daquela gatinha. Tinha a minha metida na gateira há tempo a mais, depois de se ter portado como uma selvagem na retirada do penso. Tinha o não redondo de quem tinha dito sim a um gato-gato. Tinha a certeza de que, tal como dizia a veterinária, nós não podemos salvar o mundo (até podemos, mas não havia tempo a perder com essa explicação). E a minha certeza de que podemos sempre começar por algum lado.

Ainda lhe arranjei mais um lugar onde ficar, mas a veterinária estava inamovível: aquele animal teria que ser adoptado por alguém que se comprometesse a dar-lhe cuidados e assistência sem esperar grande coisa dali. Sem saber, sequer, se iria ter a gata consigo por muito tempo. E essa pessoa, eu não tinha, naquele momento, na minha agenda emocional.

Insuportável. Peguei na gateira, dirigi-me para a porta, e cruzei-me com uma senhora que vinha a entrar: uma velhota, de bata, que não levava mala ao ombro nem animal nas mãos. Não havia, aparentemente, qualquer motivo para que uma pessoa assim fosse ao veterinário. Mas é que as aparências iludem, e há anjos (que eu já vi). E disse o anjo dos animais:

- Tão bonita, assim amarelinha... numa fêmea, é tão raro! — cintilavam-lhe uns olhos azuis muito pequeninos, muito infantis — Bom, bonitos são eles todos...

Vá ver, meu anjo, vá ver à sala de observações, o bonita que é uma Preta que lá está, à sua espera.

10 comentários:

  1. Oohh, nem sei o que dizer, nestes assuntos assumo-me frequentemente como um ser irracional. Gostava tanto que a história tivesse um final feliz... teve, não teve? (ajuda-me a acreditar que sim :))

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    1. Eu também sou irracional, perco-me toda. E era não ter as minhas, e teria adoptado aquela, de olhos fechados.
      Teve, com certeza. Quero tanto acreditar que teve, que nunca mais perguntei pela Preta no veterinário. :)

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  2. Os bichos transformam-se quando estão no vet. Deve ser algo que circula no ar :P

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    1. Fumam lá coisas, antes de eles chegarem :P
      Parecem os miúdos no pediatra!

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  3. Eu também gostaria de acreditar que a história teve um final feliz e que o anjo dos animais tenha ficado com a gatinha, porque, na verdade, bonitos são ele todos.

    Um beijinho e um dia feliz :)

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    1. De certeza que ficou, Miss Smile, de certeza. Que outra razão levaria ali o anjo, exactamente naquele momento? :)
      Um resto de dia feliz e um beijinho :)

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  4. Olá LB ,LP !

    História triste esta da preta.
    Não fiquei com muita esperança...a vet. sabe por experiência própria.
    Fez-me lembrar os problemas com a adopção de crianças.
    Lourinhos / olhos azuis e saudáveis...sempre na linha da frente.
    É pena !

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    1. Olá, José Magalhães!
      Talvez não.
      Faz-me impressão que, de forma mais ou menos leviana, se deite fora tudo o que tem defeito. Mas o que é certo é que, no momento em que é preciso, ninguém quer estes animais, ou, na tua comparação, as crianças não louras, de olhos castanhos e com algum problema de saúde.
      Eu acredito que a senhora ficou com a gata. Um dia destes encho-me de coragem e pergunto. Pode ser que ninguém se lembre :)

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  5. LP,
    Quando souberes o resultado finanal conta .
    Ok ?

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    1. Conto. Mas acho que já ninguém se deve lembrar, mesmo. Foi há mais de um ano, imagina quantos animaizinhos, nas mesmas condições, ali apareceram entretanto.
      As pessoas sabem levar ao vet para arranjar casa, mais nada.
      De qualquer maneira, tinham ligado para a Liga e tinham sido corridas a "Nem pensar!" (e o diagnóstico ainda não estava feito).

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