Vou ali e cumpro o meu serviço religioso, religiosamente, em jeito de voluntariado a que me obrigo por comandos do coração. Já tenho a experiência do outro lugar, em que me liguei tanto aos meus velhinhos que, agora, prefiro nem sequer chegar a saber nomes, nem vidas, nem sonhos, que ainda têm. Trai-me o instinto, não sei qual deles, quando entro e me falta um velho. Tenho medo que me morra um deles e a paisagem mude. Sou um animal de hábitos, gosto das coisas todas no seu lugar, porque sou também muito desarrumada, e preciso da confiança de saber onde posso encontrar o que nem preciso de procurar. Sei, porque já me informei para me sossegar os sustos, que eles saem dali por diversas razões que não só a eterna, mas, dada a fragilidade e a proximidade que todos parecem ter com o Além, quero sabê-los aquém. Não preciso de ver um cadeirão vazio para sentir uma falta imensa, que me invade e me castiga, inocente que estou. Há cadeirões vazios por tantos motivos bons — um passeio no jardim, umas férias em casa, uma aula de ginástica —, que não faz sentido que me consuma com aquele aparente vazio evidente. No entanto, não sei reprimir o susto. Noto a falta da que tem cem anos e, impiedoso, chega-me o pensamento "Tinha...". Debato-me comigo e, a custo, venço a batalha. "Oh, era tão antipática. E queria morrer, e tudo. E tinha cem anos. E..."
- Dona Mariazinha, o que é feito da cunhada da senhora? Há uns dias que não a vejo...
O olhar demente, responde-me:
- Olhe, não tem vindo, não...
Estou a ser torturada, enquanto arranjo as mãos da minha mãe. Vejo passar uma funcionária.
- Diga-me, por favor, o que é feito daquela senhora que tem cem anos.
- Ah... acho que foi para o hospital.
Então, é hora de me ir embora. Estou sempre a ir-me embora dali, não sei se também por algum instinto que me trai. Também sei que, um dia, deixarei de ir e de ter que ir, e quero adiá-lo.
Reparo que há um velho novo, que é como quem diz, que mora ali há pouco.
- Menina, pode-me ajudar aqui com o telemóvel?
Já devia saber que não devemos contrariar o destino, que esse é o que ganha todas as batalhas, e, no final, a guerra mais dura. A sala está cheia de gente, a equipa está toda ali, mas é a mim que o senhor chama. Não me chames, Senhor. Não os chames.
- Desbloqueia-se assim.
- O que são estes números todos?
- Isso é a agenda do senhor, são todas as pessoas para quem pode telefonar.
- Pode encontrar-me amor?
Às vezes, gostava de ter filmagens dos meus bocados. Com o telemóvel dele na mão, fiquei toda parva e agarrada ao chão pelos pés. Não me deixam sair dali e eu tenho que ir. Mas digo-lhe baixinho, para mais ninguém ouvir um segredo que passa a ser nosso:
- Posso procurar, a ver se encontro. Isso é o que todos queremos. Uns encontram, outros levam mais tempo.
Corro-lhe a agenda, Adelino, Albano, Américo — só nomes de outros velhos —, Amor. Fixo a barra em Amor.
- O senhor carregue no botão verde, e já pode falar com o seu amor.
No regresso, outro acidente na segunda circular, que me obriga ao desvio por outro caminho. Um carro todo morrido, o dos bombeiros e a ambulância do INEM muito vividos. E trai-me outro instinto qualquer, quando tento sossegar-me, esvaziando outro cadeirão por iniciativa minha,
Pode ser que fosse um velho.
Este amor pelos velhos devia ser sentido por muito mais pessoas :)
ResponderEliminarMuito bonito LB.
Um beijo grande
Pois devia. Mas há muita gente que o sente. E, um dia, seremos nós... :)
EliminarObrigada, Imp.
Beijo para ti.
Já te disse que és bonita? Do lado de dentro, mesmo a ver-se as entranhas és bonita de se ver.
ResponderEliminarUm beijo
Se calhar, já, Be. Mas é sempre bom "ouvir". Obrigada.
EliminarUm beijo, querida.
Querida Linda Blue,
ResponderEliminarQuando era novo também tive o contacto de "Amor". Lembro-me do telemóvel onde estava guardado: um mimo. Que me aquecia as orelhas à medida das conversas. Agora, tenho mais Amores. Tenho muitos mais contactos. Mas, já não tenho listado "Amor". Já não tenho o mimo. Estou velho.
Bom dia,
Outro Ente.
Querido Outro Ente,
EliminarOs amores que nos aquecem as orelhas têm uma época específica, o que não significa que não possamos tê-los mais tarde. O importante é que não esvaziemos o cadeirão antes da hora.
Não o vejo velho, se me permite.
Um beijo,
Linda Blue.
Que bonito. E que bonito o tempo que lhe deste. Fê-lo com certeza muito feliz. São assim os velhos, para lá caminhos... :)
ResponderEliminarSão, sim. Não são como crianças, ao contrário do que se costuma dizer. São secos e tristes e carinhosos e revoltados. Nós vamos ser assim... :)
EliminarAdmiro a tua capacidade e coragem. A mim esses sitios e essas experiencias deixam-me angustiada e deprimida. :(
ResponderEliminarÉ assim que eu fico também, mas não tenho grande alternativa. O meu mérito é bastante relativo, por isso...
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