26/08/2015

Avenida de Roma, meu amor # 2

Tinha acabado de entrar na Confeitaria Lisboa, só tive tempo de alcançar o balcão para pedir o iogurte — meu actual amor de perdição —, e surge do nada uma senhora, aos gritos, completamente fora de si, com um pequeno cesto na mão, onde se encontrava um bolo, que colocou, às pressas, como se o cesto a queimasse, em cima de um dos balcões, e, perante o espanto geral, bradou:

- Eu vou chamar a ASAE, porque houve uma pessoa que respirou para cima do meu bolo!

A funcionária, impávida, recolheu o bolo e acompanhou a senhora na escolha de outro, enquanto ela insistia na loucura:

- Na minha casa, quem faz os bolos são os empregados.

Uma rápida observação da figura, ainda que estivesse calada, denunciava a impossibilidade da existência de um único empregado, quanto mais no plural. Desgrenhada, mal vestida (collants opacos em Agosto, com sandálias...), deslocada.

~

A minha avenida de Roma enlouqueceu um pouco, desde que a deixei. Não sei se foi a minha ausência que a fez perder o tino. Agora volto ali e vejo-a desmemoriada de si. Sentada na esplanada, num relance de norte a sul, revejo-a com menos trinta anos, fervilhante e cheia de movida.  Eu própria ensandeci um bocadinho, porque a vejo assim e não a vejo desta maneira. Sei-lhe as lojas todas que já lá estavam, e as que já lá faltam. Só naquele quarteirão, sem fazer grande esforço de memória, os sobreviventes Paiva joalheiros, a Sinfonia, o Frutalmeidas, a sapataria Garcia, a China, a Romasport, a Suprema. Faltam a Vadeca, a Mami, a Exótica, o Tutti Mundi, a Taiuka.
Mais adiante, sobrevive a Tevel e, quase logicamente, o Hotel Roma, de ponto de passagem obrigatório para algum turismo sénior em que se tornou. Foram-se o Phillipe Martin, das nossas romarias a pé, das roupas garridas que nos livravam de termos que nos meter no metro para a Baixa rumo aos Porfírios. Foi-se a Benetton, a primeira Benetton de Portugal, que nos fazia as delícias e o suplício dos nossos pais — cara, e sem qualidade que justificasse o entusiasmo —, e tinha as funcionárias mais antipáticas de toda a Lisboa, incluindo toda a zona da Grande Lisboa. E talvez do mundo, ou, pelo menos, do nosso.
A Lanidor era um cochicho pequeno, que vendia lãs. Daí o nome.
A Barata era uma livraria-papelaria do tamanho do actual corredor da entrada, e ao balcão ficavam o senhor Barata e dois funcionários detentores da maior simpatia de toda a avenida, um tímido e o outro esfusiante. E ali encontravam-se todos, sem excepção, os livros da escola, e todo, sem excepção, o material escolar, por mais rebuscado dos confins da imaginação da professora que ele fosse.
Foi-se a Maçã, foi-se a Chez Elle, foi-se a Naia-Cancan-Primaz, foi-se a Gala, foi-se o Tecidos Roma, foi-se a primeira croissanteria de Lisboa — onde provei o meu primeiro croissant de chocolate e, desde esse dia, estreitei seriamente as margens para dúvidas quanto à possibilidade da existência de Deus —, foi-se o bric-à-brac dos velhotes, quase à esquina da João XXI, que só vendiam patarecos ultrapassados, e onde cheirava a pó, mas era tudo precioso. Já só eles vendiam tachos e panelas em miniatura, carrinhos de lata e bonecas cujos braços e pernas eram presos por elásticos (que, um dia, apodreciam), foi-se o stand da Cimca, foi-se o cinema Roma, foi-se o Fil à Fil. Sobrevive a Bertrand, sobrevive a Ibiza (já na João XXI), sobrevive a Brancal, foi-se a sapataria Giselle e a minha pastelaria Roma, que transformaram num Mc Donald's. 
Foi-se a Piscina do Areeiro onde aprendi a nadar, à força e teima de uma professora baixa e rechonchuda, generalíssima, de pau na mão, para onde entrei ainda nem tinha pé na zona de pé, muita água com cloro bebi eu nesta vida, deve ser por isso que sou assim. 
Desapareceram algumas figuras típicas, umas porque foram à sua vida, outras porque foram à vida. Havia o drogado, bêbado, sem abrigo, que percorria a avenida de lés a lés, todos os dias, e que dizia o mito urbano ser de boas famílias, uma desgraça, como se a desgraça pudesse ser maior em função da graça. Havia o Pai do Paquito, que estacionava o Mercedes à porta da Mexicana (em cima do passeio, mesmo), capachinho até à testa, e retirava da bagageira, com grande pompa e circunstância, uma mala de cromados, onde transportava todos os jornais desportivos do dia e da semana. E o Conde da Borralha, sempre gentil, ultra-educado, Gostaria tanto de a conhecer, menina. Pode dar-me essa honra?, não querem lá ver que hoje eu podia ser condessa, e logo da Borralha? Havia os Meninos da Suprema, que andavam quase todos no meu liceu, eram tão bad, são tão casados, e tão pais, e sei lá se não já tão avôzinhos da Heidi.
Descobri isto, enquanto procurava mais coisas que pudessem avivar-me as memórias, mas não retirei praticamente nada, porque as minhas me pertencem e estão cravadas no coração. 
Ainda a vejo assim, fervilhante e cheia de movida, apesar de estar um pouco louca, desgrenhada, desfasada da realidade e mal vestida. Tudo isso também eu estou, exceptuando o vestir mal — ensinou-me ela que tudo menos isso.
A avenida de Roma sou eu.


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