30/03/2016

Voltou, a minha amiga pária

Fotografias de Steve McCurry

Avistei-a ao longe e, se não a reconhecesse imediatamente, diria que se tratava da rapariga afegã, por duas vezes capa da  National Geographic Magazine. Lá estava ela, saias várias até aos pés, lenço pela cabeça, atravessando a testa, aquela mesma tez do leite quando o café lá se mistura, aquele mesmo semblante autêntico e aflito — só não trágico como o de Sharbat, porque não foi da guerra que veio fugida, tão- da penúria e da fome, conluiadas com o clima, poderoso cúmplice de toda a miséria.
Lembro-me que Sharbat foi, também ela, mãe de quatro filhos — no caso, filhas — e sinto uma coerência e uma afinidade nessa memória.
Acena-me, subitamente alegre, desmanchado o quadro afegão, indica-me o lugar onde estacionar e encontramo-nos, frente a frente, genuinamente contentes por nos revermos. 
- Então, voltou para cá?
- Ai, senhora, voltei, lá muito mau.
- Fez bem em ter voltado. Então e os seus filhos?
- Trouxe o mais piquinino. 
Que estranha forma de vida, cantaria Amália, se estivesse dentro da minha cabeça. Foi daqui para a Roménia, por as saudades falarem mais alto — sabe quem sente, que gritam que não se calam, ao ponto de terem que ser silenciadas, mortas impiedosamente. Até aí, compreendo. Chega a casa, onde ficaram os quatro filhos, escolhe um — ainda por cima, de forma nada aleatória, o piquinino, e trá-lo com ela, deixando os outros três — que são, forçosamente, apenas menos piquininos do que aquele —, para trás. Esta parte, não compreendo. Não quero entender o que leva alguém a optar por um de quatro filhos, seja por que motivo for. E não quero, porque não posso. Devolvo-lhe um olhar autêntico e aflito, a que ela responde:
- Lá, muito mau...
, muito pior para mim — apesar da penúria e da fome, conluiadas com o clima, poderoso cúmplice de toda a miséria —, se tivesse agarrado num só, tão-, e deixado os outros três para trás. 

2 comentários:

  1. Há escolhas que nunca hão-de ser fáceis de fazer, menos ainda compreensíveis a quem - como diz o povo - "não passa por elas".

    Beijinhos à Tia :)

    ResponderEliminar
  2. True-true. Por isso, digo "E não quero, porque não posso."

    Beijinhos sei lá :)

    ResponderEliminar