29/03/2016

Quando um simples vestido encarnado te encarna no Diabo a quatro

Se não queres ser lobo, não lhe vistas a pele.
O Diabo veste várias formas (uma delas é Prada — quem me dera, mas teria que vender a alma ao Diabo).

E eis que foi chegado o dia em que um mero vestido me classificou como ímpia aos olhos de duas velhinhas, Testemunhas de Jeová, apenas e tão-só pelas aparências, as tais que iludem. Passaram por mim as duas, muito siamesas, ombro-a-ombro, folhetos bíblicos nas engelhadas mãos grossas e pequeninas, cabelos curtos, óculos de massa, vestes castas, sapatos só não de freira porque Jeová não tem noivas (sendo que os sapatos de freira só não são de homem porque não há freiros) —, portanto, sapatos de homem que nem o Papa atura —, pé grosso e pequenino ante pé. Mal fiz tenção de desviar caminho, desnecessários intentos, pois que o encontro, frente-a-frente, deu-se, fatal e fatalmente. Não nos trespassámos por seguirmos linhas paralelas e contrárias; próximas que estivemos por segundos, cruzámo-nos sem cruz nem sinal de cruz, invisível uma para as outras. Não fora tê-las visto dirigirem-se imediatamente a outra senhora, que vinha imediatamente atrás de mim, e teria imediatamente pensado que não estavam em horário de peregrinação e de difusão da palavra. Na dúvida se me teriam visto — quão transparente consegue uma pessoa ser, se vestida de encarnado? Quão opaco consegue ser o olhar de uma pessoa, ao vislumbrar outra, se vestida de encarnado? —, arrepiei caminho, sem um arrepio, alcancei-as novamente, contornei-as, voltei a cruzá-las, agora em modo espada-de-Afonso-Henriques — chata e comprida —, e ambas me olharam, começando pelos pés e só terminando no céu, muito acima das nossas cabeças, confirmando que me reconheciam e identificavam, confirmando-me que não me aceitavam. 


2 comentários: