05/03/2016

Três tristes ensaios para contar a mesma história

A vida tem destas coincidências: na mesma sala de espera de um hospital público, entrou um rapaz desacordado na maca, acompanhado pela mãe. A um canto, deitada em outra maca, uma rapariga da mesma idade, acordada, cuja mãe, sentada perto, tratava de alimentar. As mulheres aparentavam a mesma idade, mas um olhar mais atento denunciava a velhice acelerada na mãe do rapaz, que poderia bem ter menos dez anos do que a outra. Explicou a todos os presentes que o filho era epiléptico e que estava assim — a dormir, incapaz de acordar — desde de manhã, e isto já eram oito da noite. E que na semana anterior tinha estado internado, naquele mesmo estado, durante quatro dias.
As mães da urgência são urgentes no pânico, no sobressalto, no desassossego ou na pressa de sair dali — da situação e do lugar. A esta restava apenas a desurgência: demasiados anos a cuidar sozinha de um filho feito a meias, todos os anos da juventude gastos naquelas salas, por conta de uma hora mal acontecida quando o Pedro gritou cheguei. Pedro, o seu mundo —, confinado inteirinho às paredes todas da sala da urgência.
Sozinhas, filhos sem pai na hora da aflição, não há mães solteiras, todas são solteiras, tão só mães. 
Um olhar de relance foi o suficiente para lhe traçar uma história de vida breve e dura: um filho ao colo, ao peito e às costas logo aos dezanove, o pai desaparecido do radar, um percurso de trabalho sem escola, sonos varados, sonhos esmagados. O cabelo que podia ser bonito se estivesse lavado e solto, os óculos que lhe aumentavam o tamanho dos olhos, o sorriso desdentado, a constatação, já sem lamentos,
O que ele tem, sei eu, é epilepsia, mas lá porque é que ele não acorda, é que eu não sei.
E o rapaz desacordado, como se morto. 
E ela desadormecida, como se viva.

Fui com o Pedro à urgência outra vez. No trabalho já não acreditam que ele adoece e adormece sem acordar.
O Pedro tem agora a idade que eu tinha quando ele nasceu. Quando olho para ele, não acredito que ele podia já ser pai, de tão pequeno o vejo. Os primeiros ataques, teve-os ainda na alcofinha. Também ficava assim, quietinho, que era uma inquietação. Eu estava sozinha porque o pai do Pedro disse que se ia embora se ele nascesse, e foi. Eu também só soube que estava de bebé já só faltavam quatro meses para ele nascer. Passei muita fome e o Pedro nasceu muito magrinho. Agora está um homem e eu passo a vida na urgência. Qualquer dia o patrão despede-me e o Pedro e eu voltamos à fome.
Está ali uma senhora a dar de comer à filha, coitada. O que será que a miúda tem? Parece tão saudável. Se calhar, está grávida. Coitada, sei bem o que a espera, tão novinha. Ou então, vão resolver as coisas lá à maneira delas. Coitadas.
A senhora sorriu-me.
Não sei se o Pedro acorda.

Estávamos na sala de espera e eles entraram. Eu tinha na lapela o autocolante que me anunciava acompanhante. Eles eram mãe e filho, ela com um autocolante igual ao meu, ele na maca, a dormir. A minha e o dela deveriam ter uma idade muito próxima, se não a mesma. Pus-me então a avaliar a dela, pareceu-me que talvez fosse a minha. Mas o cabelo ainda todo negro, preso num rabo-de-cavalo levemente ondulado, a pele ainda lisa, disseram-me que talvez menos dez — pobre menina, há-de ter sido mãe ainda menina. Sentada numa das cadeiras, baloiçando-se para trás e para a frente, num enfado, numa ralação, 
Ele está assim, põe-se assim, fica assim.
E assim, era a descrição que conseguia como mais exacta para o mal que afectava o filho. 
Enquanto lá estivemos, nas horas seguintes, o rapaz não abriu os olhos, ou, sequer, mexeu um dedo sob o lençol branco, quase mortalha, que o cobria.
Os olhos dela, aumentados pelos óculos de grossas lentes, viraram-se na nossa direcção, e sorriram um sorriso baço, translúcido de simpatia e solidariedade. 
Saímos dali pelos nossos pés, desejei melhoras, e entrámos na madrugada, fresca e molhada, voltando para a nossa vida, quente e confortável. 
Ela ficou, assim.

6 comentários:

  1. Anónimo5/3/16

    e tão bem contada. com tantos "pedros" e miúdas de rabo de cavalo, que andam assim, sem se saber, acordados ou a dormir.
    beijinho, Linda.
    bom fim de semana,
    Mia

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Estas duas pessoas existem mesmo. Ainda lá ficaram, quando nos deram alta a nós. Espero que o Pedro tenha acordado e não tenha voltado a adormecer daquela maneira.
      Obrigada, Mia.
      Bom fim de semana.
      Beijinhos :)

      Eliminar
  2. Sempre admirei a forma como a luz branca é decomposta pelo prisma no arco-íris que ela acomoda e transporta. Neste arco-íris de histórias encontrei o efeito do prisma: tal como o de cristal, também este é admirável.

    Um bom fim de semana, LB.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Comecei por construir um triângulo dentro daquela sala: o ponto de vista de um utente, o da outra mãe e o meu. São sempre prismas diferentes. E todas as histórias os têm, com os seus próprios reflexos.

      Obrigada, Xilre.
      Bom fim de semana.

      Eliminar
  3. Uma história perfeita para vidas que nunca conseguiram sê-lo.

    Beijos, Lindinha azul :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E quem sabe se algum dia se endireitam...

      Beijos, Maria Poesia :)
      Um domingo feliz

      Eliminar