21/03/2016

Quando alguém perde uma excelente oportunidade de ficar quieto/

Quando alguém perde uma excelente oportunidade de não ficar calada

Ainda do ginásio, que é o meu laboratório socio-antropo-cultural: ontem fui para lá, tinha aberto portas há pouco. Como sempre, inspeccionei onde é que se encontravam o senhor da mercearia, sua mulher e filho, para poder evitá-los. Quanto à mulher, posso dormir descansada, porque, para além de ser a que me incomoda menos, desapareceu do radar há semanas, o que pode apenas significar que os outros dois a asfixiaram, esquartejaram e meteram os bocadinhos todos em caixinhas Tupperware*, lá no armazém da mercearia, numa arca congeladora desactivada, mas ligada à tomada, que é para não cheirar.
Como não os encontrei em nenhum buraco daquela casa, ascendi à sala de cima, toda eu era ares de superioridade só por isso (na descida, dá-se a inferioridade, pelas mesmas razões). Lá chegada, constatei que tinha a sala só para mim — que podia fazer o pino, usar as máquinas o tempo que eu quisesse, deitar-me no estrado do supino e dormir (ou num dos colchões), tirar selfies estúpidas, ou tudo ao mesmo tempo, que ninguém teria nada a ver com, ou sequer dar por isso. Era eu a DDT, a dona daquilo tudo. A detonar.
Toda cumpridora, no entanto, amandei-me ao ergómetro. Já tinha remado 423 metros quando me surge o senhor da mercearia e se prostra precisamente diante de mim, eventualmente por uma questão de falta de espaço, já que a sala tem uns míseros quarenta metros quadrados.
É claro que tive que optar por utilizar o meu olhar à transparência — apesar de o homem ser opaco —, o meu olhar através, o meu olhar subitamente-interessada-no-tecto, o meu olhar a-sério-?
Mas o senhor não desarmava, que é como quem diz, não desmobilizava.
Então, resolveu exibir-se, espero que não para mim, mas também não estava nem estou a ver para quem mais — a menos que ele veja almas de outro mundo, ou não perceba, como a minha Molly, que o reflexo no espelho lhe pertence, nem eu sou aquelas duas giras. Pegou em duas medalhas de dez quilos cada uma, e espetou-as no pau dos halteres. Preparou-se todo, encheu o peito de ar, suspirou com os dentes cerrados, baixou-se, ajustou as manitas ao pau, voltou a empertigar a atarracada figurinha, concentrou-se, e lançou-se, quase de cabeça, aos halteres, os dois bracinhos muito esticados, o rabo muito espetado ao céu.
E não conseguiu levantar aquilo.
E eu, que podia largar os remos, esquecer Cacilhas, nadar até ele, e perguntar com uma vozinha de jantes de liga leve, "Quer ajuda?", não: continuei, estupidamente, a remar, sem paz.

* ninguém me paga para isto

5 comentários:

  1. Anónimo21/3/16

    HAHAHAHA

    O gajo sempre podia ter sido menos ambicioso e sempre fazia melhor figura...

    :)

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    1. Mas eu sou má. Iria sempre verificar os pesos dele, para gozar o prato na mesma.

      :)

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    2. Olha aqui: http://lindaporcaoucheirodeestrume.blogspot.pt/2015/09/uma-pessoa-nao-e-so-um-modelo-de.html

      :)

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  2. E conseguiste não rir à gargalhada?!

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    1. Consegui, pois. Até me apetecia chorar, pois também sou boazinha e não suporto ver alguém humilhar-se assim :P

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