E há que tempos que a minha Noni,
aquela pessoa anónima que vinha espumar para aqui de raiva cada vez que eu
falava de professores – e que ela sabe que eu sei quem ela é –, não me vem
visitar. Não que lhe sinta a falta, mas acontece que, assim, nestes dias
alegóricos, lembro-me dela. Chego a achar que isto podem ser saudades daquele anjo
carnudo.
E também me dá logo para me pôr a
relembrar a minha primeira professora, que foi a da primária, e que me
detestava tanto quanto me amava, por força de uma fragilidade física associada
a grande garra intelectual de que eu era detentora à época. Depois, as coisas fizeram
uma inversão directa, quando operei a transformação em cisne, embora até ache que
fiquei mais bem servida. Capaz de, a esta hora, estar a desmandar em algum
laboratório de experiências altamente quânticas, ao invés de ir ao supermercado
amiudadamente, pavonear esta coisa toda. Só o desperdício.
Chamava-se Maria de Lurdes, a
grande bruxa. Tinha voz tabaqueira, cabelos pretos e era muito velha. Quer
dizer, devia ter a idade que eu tenho agora, mas na minha memória ficou uma
figura anciã, muito pouco carinhosa – e a mim ninguém me explicou que a professora não
servia para me dar miminhos – e excessivamente autoritária. Aquela de me mandar
ao quadro, de me mandar apagar o que tinha escrito, de me mandar sentar, de me
mandar estar direita, de me mandar calar (a mim, que era a Belinda, a escrava
do silêncio!), cedo me fez perceber que ela e eu não era igual a ui-ui. Em
suma, aturei-a quatro anos, cada um deles em contagem decrescente para poder
ver-me livre da sombra negra. Nem após me ter sido explicado que se tratava de uma
viúva, mãe de filho único com uma deficiência grave, e de o facto de eu ser a mais nova da
turma ser capaz de lhe fazer urticária, me fez perceber o enredo e reconsiderar
a minha postura, pelo que, assim que me apanhei à fresca no liceu, nunca mais a
fui visitar, o que ainda hoje não lamento, nem já vou a tempo de desfazer,
refazendo.
No liceu tive muitos e variados
tipos de professores, a maior parte deles muito bons. No ensino privado, digam lá
o que disserem, não há cá pão para malucos: os faltistas, os atrasados, os maus
profissionais, ou ficam à porta, ou saem por ela mais depressa do que entraram.
Dessa época, guardo memórias boas de quase todos, mas guardo um cantinho
especial à minha Ivone, professora de Português do 10.º e 11.º anos, a quem, na
altura, não dei o devido valor. Ivone, minha Ivone, tinha um timbre extremamente
peculiar, elevando as vogais abertas ao seu expoente máximo, a começar pelo seu
próprio nome. Era uma angústia para os meus tímpanos de cada vez que ela dizia
IvOOOne PEEEres. Morria-me um neurónio, a cada vogal aberta das dela. Por isso é que
hoje isto é como é: sobreviveu um – o surdo. Uma aula da minha Ivone era coisa para
me deixar as orelhas em brasa, não porque ela mas sovasse, ou eu usasse brincos
de pechisbeque, mas porque era assim. Qualquer ida a uma discoteca, bombar toda
a night com a cabeça metida numa coluna, era algo de muito aquém em termos de decibéis,
ao pé de uma aula de Português do meu 10.º e do meu 11.º. No entanto, hoje em
dia, reconheço que esta foi a professora que mais me ensinou, se pudesse pôr numa
balança imaginária todos aqueles que me passaram pela vida – a começar e a
acabar por me ter rapidamente tirado as linhas. Ainda estou a vê-la, agarrada
às minhas composições, muda, os óculos na ponta do nariz, a piscar muito os olhos,
muito sérios, a colá-los em mim, depois a abanar negativamente a cabeça, e, num
suspiro,
Isto... isto... se tu não fosses tão
preguiçosa...
Sou capaz de guardar os
professores da faculdade para outro post. É outro sector, um mundo totalmente à
parte. Excelência, mediocridade e um nico de surrealismo, tudo num só edifício.
Lembro-me de quase todos os meus professores (é raro esquecer-me de uma pessoa), mas aqueles em que penso com admiração e até carinho são os da faculdade.
ResponderEliminarEu também me lembro, acho mesmo que de todos. Na faculdade, apanhei alguns que não faziam a mais leve ideia do que é que estavam ali a fazer. Mas acho que a carreira docente universitária não tem muito a ver com a do básico e do secundário. São professores por contingências da formação, muito mais do que por vocação.
EliminarTambém não tenho boas memórias da minha professora da primária. Na altura, acreditava que, na verdade, era uma bruxa má. Cheguei a levar algumas reguadas por motivos menores, sem importância nenhuma, como no dia em que ousei arrancar uma folha do meu próprio caderno que os meus próprios pais tinham comprado com o seu próprio dinheiro. Estava a fazer uma cópia, mas, como perfecionista que sou, achei que a letra não estava perfeita. Decidida a resolver a situação, arranquei uma folha do caderno, disposta a recomeçar a cópia. Mas o seu olhar de ave de rapina apanhou-me em flagrante. Este foi apenas um dos casos, mas houve muitos mais...
ResponderEliminarUm beijinho, Linda
Miss Smile, pela descrição que faz, dir-se-ia que era a mesma pessoa. Ave de rapina, assim mesmo. Parecia ter um olho de 360 graus e os berros sempre prontos. Só não confere nas reguadas, mas porque a escola era Moderna e não porque eu não seja desse tempo ou não lhe fosse na vontade a ela...
EliminarUm beijinho também, uma noite feliz :)
Olá Linda Blue. Pois eu , da minha professora primária tenho boas recordações. E numa escola pública. Era a Escola Anexa ao Magistério Primário de Coimbra. Depois, fui até ao ciclo preparatório: a minha professora de Português e ouytra de História. De todo o resto, apaguei. Já no liceu, no Secundário , a minha professora de Português, de seu nome Lívia Múrias; tenho a dizer que não haveria em liceu algum do mundo e arredores, alguém com tanta competência. E isto no Liceu Infanta D. Maria, em Coimbra. No privado, na minha altura de estudante, só mesmo quem não conseguia fazer jus às exigências do ensino oficial, isto em Coimbra, note-se! Como tudo se modificou! Mas, mesmo assim, ainda há muito bom profissional em ambos os sítios.
ResponderEliminarBeijinhos,
Mia
Olá, Mia :)
EliminarEra tudo o que eu queria, poder ter boas recordações da minha professora. Por alguma razão se chamava primária. Mas creio que nem todos os meus colegas guardaram a mesma imagem dela que eu guardei. Podia ser alguma coisa estritamente pessoal.
Nunca me dei conta de o ensino privado ser para pessoas menos capazes :) Acontece que, naquela época, os meninos do ensino público entretinham-se a partir vidros e a ameaçar os professores. E os meus pais acharam melhor optar por colégios...
Beijinhos e uma noite feliz :)