31/08/2022

Entrelaçados

Vi-os primeiro de costas, caminhando pela sala de espera dos tratamentos, as mãos dadas com os dedos entrelaçados, havia um amor na junção da pele dos dois,

parecem namorados

mas alguma coisa me disse que talvez mãe e filho, uma diferença pouca, 

se calhar teve-o com quinze anos

E depois, tão parecidos, os namorados nunca são parecidos, as mãos iguais que não se largaram, e então senti que estavas ali comigo, as nossas mãos iguais e dadas, entrelaçadas, nós, que somos mais de abraços, o teu abraço que vem sempre, o teu abraço que é sempre o primeiro, naquele dia “carcinoma”, veio logo, inteiro e meu, também já vi pérolas de vidro a saírem dos teus olhos desde aí, tu lembras-te de eu te agarrar o braço já adolescente e pedir a brincar, na rua, “Vamos fingir que somos namorados?”?, e tu “Oh, mãe…”, a soltares-te sem convicção nenhuma, olha, hoje lembrei-me de nós naquelas duas mãos dadas, sei perfeitamente que ali estavas também, como estás há exactamente vinte e dois anos abraçado a mim. Meu pequenino, meu amor tão grande.



30/08/2022

Eu tenho problemas com médicos # 31

Tenho quase a certezinha absoluta que, se conhecesse uma pessoa como eu, fugia dela a sete ou oito pés. Há dias, como hoje, em que pareço desvairada.

Hoje foi dia de tratamento plus consulta. Entrei no serviço um nico desmoralizada, com receio de que me acontecesse o mesmo que ontem: sorvi uma hora de espera naquele salão inóspito. Mais do que a doença, custam os tratamentos; mais do que os tratamentos, custam as esperas. Porém, nem teriam passado cinco minutos de me ter posto com cara de sala de hospital — a explorar sites de roupa bonita — quando ouço o meu nome no altifalante, a chamar para o tratamento. Rápido, como sempre (a não ser naqueles segundos em que não posso respirar e só me passam disparates pela cabeça, para além das placas da máquina), lá fui para o vestiário preparar-me para voltar ao salão e esperar duas horas pela consulta. Ainda só tinha puxado o fecho (nas costas) do vestido, ouço o meu nome a ser chamado para o gabinete oito, enfiei Natércia até aos sobrolhos e, ainda com o colar na mão, dei mais corda à alpercata corredor afora, na gula de não perder a vez. Dez metros volvidos, entro de rompante no gabinete do médico, “Ai, desculpe, senhor doutor, mas é que estava no vestiário e ouvi o meu nome”, tudo isto enquanto endireitava Natércia, sem espelho nem nada. (Devo ter posto o risco ao meio, que é para aí o pior penteado de sempre para mim, fico a parecer o John Lennon. Ou a Yoko Ono.) O médico consultou-me em cerca de três minutos — sem queixas —, quis ver a minha pele — sem queimaduras —, pelo que comecei a preparar-me para me ir embora. Puxei outra vez o fecho do vestido (saudades do meu cirurgião, que sempre mos desceu e subiu, com a desculpa de que essa é uma das tarefas para as quais um homem serve), quando reparei que tinha atirado o sutiã para cima da marquesa, para onde lançara também a mala de mão e a pasta com os cartões necessários. Já não podia, porque não queria, voltar a abrir o fecho do vestido. Azar meu: as minhas malas de mão são minimalistas, cabe lá dentro o telemóvel, as chaves de casa e carro e uma nota de quinhentos euros, mais nada. Sorte minha: tenho ordens para só usar sutiãs sem arames, portanto foi só amachucá-lo o melhor possível e sair de telemóvel na mão. Nem imagino o que teria feito se levasse um desses com arames e caixas. Se calhar, tinha que esquecê-lo e deitá-lo para o cesto dos papéis. Teria sido tão mais constrangedor. Assim, foi só engraçado, ver a cara do médico.



26/08/2022

Mal-haja

O homem que está atrás do balcão embirra comigo porque sabe que eu o detesto. Também pode ser ao contrário. Outro dia, precisava de uma informação, estava cansada de tanto esperar, e aproximei-me do vidro. Ele estava sentado a uma secretária, olhou para mim e ignorou o meu “Boa tarde, precisava de uma informação”. Chegou uma mulher com uma senha na mão e ele desata a atendê-la. Claro que protestei que estava primeiro, mas o inflexível disse que ia atender primeiro a senhora que tinha senha. “Ah, entendi. Eu estou invisível e não sei. Posso fazer os gestos que me apetecer? Porque deduzo que não me viu a fazer-lhe sinal que queria uma informação”. Afinal, eu só queria saber [onde raios] existia uma casa-de-banho, “já não digo limpa, porque isso me parece impossível, mas, ao menos, em que a porta feche”. 

Não gosto de mim agora. A fase da raiva nunca passou e, aparentemente, nunca passará. Tenho vontade de bater nas pessoas intransigentes. Nas pessoas, ponto.

Uma mulher foi até ao vidro do cumpridor, não levava senha, pediu muitas vezes “por favor”, “desculpe lá”, sempre nuns sorrisos, todo um exagero que pensei que fosse ajoelhar-se, e ele só lhe pediu o cartão dos tratamentos. Mais três “obrigada, desculpe lá” e ele, “Não tem de quê”. Ela, por três vezes — que eu contei —, “bem haja”. Também tive vontade de lhe bater, a subserviência é tão ridícula e tanto há quem a confunda com educação ou simpatia.

Depois ela sentou-se atrás de mim ao telefone e disse mais duas vezes “bem haja” — que eu contei —, à despedida, antes de desligar a chamada.

Eu não quero ficar assim.

23/08/2022

A sala da solidão

Às vezes, apetece-me desistir. Parar agora e sentar-me, a esperar para ver. Estou farta de salas de espera, já agora. Cansei-me de casais de reformados que vão juntos aos tratamentos de um deles. Se é ela que está doente, ele pavoneia-se de um lado para o outro, as plumas de pré-viúvo ainda — considera ele — em forma, todas no ar. Há um que, assim que a mulher vem lá de dentro, faz uma espécie de vénia a quem está sentado (onde me incluo) e, histriónico, deseja as melhoras e acrescenta um “até amanhã”, que me irrita a ponto de ter vontade de o mandar à merda ou fazer-lhe aquele gesto do dedo. Intimamente, mando mesmo, às vezes até para lugar mais fálico e menos escatológico, reviro os olhos e nunca respondo. A educação de águas límpidas que me foi fornecida não me obriga a ser simpática com pavões, cláusula primeira. Se é o homem que está doente, lá vão elas de unhas dos pés verde fluorescente, exagerando nas mesuras e cuidados (“Queres um pãozinho?”, “Uma bolachinha?”), rainhas do esmero, em compensação tratadas como criadas, fazendo de conta que não ouvem a resposta brusca e o mau modo constante. Precisavam eles de uma igual àquela cigana (ups, disse) que outro dia consolava o marido birrento, “Já disse que não vou, ninguém me obriga”, batendo com o pé no chão: “Mas a doutora não disse que o tratamento é para te curar, é só para te tirar as dores”. Depois, há o senhor de cadeira de rodas que só tem meia perna e veste calções de ganga, o coto todo à mostra e uma cruz desenhada a caneta Bic no lugar da cicatriz. Há as mulheres e os homens também que, como eu, vão sozinhos ao tratamento, porque aquilo são meia-dúzia de minutos, não dói no corpo nem dá efeitos secundários imediatos. Há a rapariguinha negra, de vestidinhos floridos e justos como os de uma criança, que dorme sempre. Invejo-lhe a tranquilidade e a alienação, quando afinal até é fácil deduzir que ela está muito mais doente do que eu. Há os da etnia, que vão em grupo para o tratamento de uma delas. Há as senhoras de idade, de touca ou de peruca sintética, que têm todo o tempo do mundo e as longas esperas não parecem afectá-las em nada. Há os magros como cães famintos, que não inspiram coisa nenhuma, a não ser talvez espanto. Parecem saídos de um campo de concentração e têm todos aquele mesmo olhar que vemos nas fotografias de Auschwitz. De vez em quando, passa uma maca ou uma cadeira de rodas, à partida ou à chegada de uma ambulância. Já não olho.
Dizem-me, quando me vêem ir abaixo, que falta pouco. Não falta pouco, não senhor. Faltam treze vezes este outro mundo, que, mesmo que — por um paradisíaco absurdo — esperasse só um minuto de cada vez que ainda terei que lá ir, seriam sempre treze minutos de inferno para enfrentar.


20/08/2022

Travão de mão, travão de pé, travão de dedo

A frota do lar, se contabilizadas todas as viaturas de que já fomos alegres proprietários, tem variado alguma coisa em termos de tamanho, em função do número de elementos que compõem la famiglia. Quando começámos, éramos dois e um Y10, que ainda aguentou uma petiza — embora muito mal, já que a cadeirinha não cumpria o efeito de concha em caso de embate ou travagem brusca, tão curta era a distância entre os bancos da frente e os de trás (parecia um avião, sim. Ou o Coliseu dos Recreios) —, mas já não aguentou duas, e, assim, fomos indo ao mercado automóvel de cada vez que esta barriga se enchia de vida. No último, ricos em sonhos filhos e pobres em ouro, tivemos que enveredar pela via da segunda mão no volante, que é como quem diz, dos usados. E, assim, tivemos a primeira de três monovolumes de sete lugares (o sétimo era conhecido por “o lugar da sogra”, que ficava à porta e era, idealmente, para ser usado sem cinto de segurança em percursos com curvas muito apertadas. Calma, não estava destinado à minha mãe). A última que tivemos, aqui designada por “o camião”, resolveu falecer o ano passado, assim do nada, a meio do nada, ou seja, de uma autoestrada. 

Sejamos francos: já nunca andamos os seis no mesmo carro em simultâneo, pelo que o arranjo do camião — que ficava mais dispendioso do que o valor de mercado dele — era mais um capricho (bastante meu) do que uma necessidade. E, assim, entrou para o parque automóvel desta barraca o primeiro carro com travão de dedo.

Enquanto condutora do camião, não posso dizer que tenha tido grandes dificuldades em utilizar o travão de pé: o carro destravava-se com uma alavanca mais ou menos escondida, como a do combustível, e travava-se com aquele quarto pedal à esquerda, que nos exige um alongamento ao nível da correspondente perna, mas que é um stretching que só faz bem. No entanto, tal sistema não só é perigoso por ser tão fácil destravar o carro — e ele há crianças muito irrequietas e imaginativas —, como também é impossível a qualquer passageiro travar o carro no caso de o condutor (inadvertidamente…) o deixar destravado. Por acaso, nós fomos muito mais neuróticos com os filhos do que os meus pais foram connosco: iam tomar um café à Pastelaria Roma, enquanto nós ficávamos as duas a apitar até endoidecermos um quarteirão inteiro.

A mais recente aquisição automóvel tem, como já disse e nunca é demais repetir, travão de dedo: carrega-se num botão e trava, carrega-se outra vez no botão e destrava. Se a possibilidade de os passageiros poderem travar o carro está resolvida, a de as crianças o destravarem não está. Nem para elas, nem para humanas como eu. Aquilo ora acende uma luz quando trava, ora apaga a luz não sei quando. E é que nunca me lembrei de ir verificar ao painel se aquele P estava aceso. Parava o carro, carregava no botão, dava assim uns abanões para a frente e para trás e era desta forma que achava que sabia se o boi estava manso ou não. Outro dia abanei-me no banco e ele não se moveu. No entanto, deixei-o destravado. Vá que foi num plano sem inclinação. A partir desse dia, nunca mais lhe toquei, não vá ele dar uma de touro mecânico. Tenho minha Rosinha e somos muito felizes a gente as duas.

Conclusão: que prejuízo e que espaço ocupava a velha trave do travão de mão para andarem com invenções destas? Já só falta inventarem o travão de testa, se é que me faço entender. Vou fundar um movimento qualquer, #naoabrimosmaodotravaodepuxarparacimaeparabaixo.



13/08/2022

Nunca fujas ao teu destino

Estava eu relativamente mal instalada no grupo do whatsapp da dança, no qual havia entrado apenas e tão-só para obter o nome de uma música — que adoro de paixão e é para aí a única coreografia que sei de cor sem erros, o que já faz de mim uma interesseira inescrupulosa —, onde me aborrecia com toda a solenidade, basicamente porque, sendo o mesmo constituído por dezenas de pessoas, as trocas de mensagens eram acerca de tudo menos do interesse comum, já não contando com os aniversários, em que era um dia inteiro de quadrinhos amorosos de parabéns, numa desordenada competição de quem é que conseguia o mais piroso, depois fiquei doente, abandonei as aulas e saí do grupo, um alívio sem precedentes, só comparável ao da satisfação de uma necessidade fisiológica premente, sete meses de paz e sossego, e depois voltei. Voltei, e voltei a dançar, e devo ter ficado tão excitada com essa volta que a minha vida deu, que pedi a uma das administradoras [olha a cagança] que me incluísse de novo no grupo, ela assim fez, e eu, sejamos honestos, aguentei-me lá… quatro dias. Desta vez, já não havia necessidade de alguém fazer anos, estava rigorosa, diária e definitivamente instituída a parolice no grupo, por conta não sei de quem, ou de quens — a pessoa entra, baila e sai, não conhece nomes, não associa caras, não nada, sabe apenas que há a alta, a gira, a que dança bem, a gorda, a antipática, e já sabe muito —, todos os dias gifs cheios de glitter a desejar um dia bom, bonecos a brilhar, corações a explodir de tanto amor, my eyes, my eyes, não posso desver tanta saloiada, então saí outra vez, desta feita para não mais voltar, o problema és tu, não sou eu, podes ficar com o carro, a casa, as jóias, os putos, mas nesta barraca de farturas não fico eu.



Estava eu descansada da minha vida, livre de gifs com ursinhos e outros bichos cheios de amor para me dar, quando, de repente, a mulher que podia ser minha mãe — que, relembro, deu um olímpico trambolhão e partiu não sei quantos ossos, ao nível do fémur e do pulso, mas, que eu tenha sido informada, nenhum no crânio — desata a mandar-me diariamente bonecada semelhante à anteriormente descrita, os bons dias, a frase lapidar, a lição de vida, as protecções divinas, tudo muito cheio de brilhantinhos e corações e sopeiradas assim. Vejo-me compelida a responder-lhe com um singelo porém assertivo coraçãozinho, em sinal de “gostei”, só para não a ofender, quando, efectivamente, “não gostei”, isto de ser uma pessoa educada é um fardo excessivamente pesado, que faz da pessoa uma conformada e hipócrita, quando a minha vontade era correr tudo ao coice, socorro, tirem-me deste pesadelinho!

Preciso de uma explicação do cosmos: porquê?


 

11/08/2022

Incondicional

Excepcionalmente, hoje fiz tratamento de manhã. Mandaram-me estar lá às 8:30 e eu, obediente, assim fiz. Pode ter sido da hora do dia, pode ter sido da luz matinal assim triste, pode ter sido do meu próprio sono — a radioterapia dá-me sono; a quimioterapia dava-me sono; todas as anestesias que fiz entretanto me deram sono; também há pessoas que me dão sono —, mas o ambiente do salão de espera é totalmente outro, como se o espaço não fosse o mesmo: quem ali está, está verdadeiramente doente. Aquela é a recta. Um rapaz com pouco mais de trinta, apoiado na companheira, talvez irmã, talvez Simão de Cirene ou apenas Maria, todo cera, todo rosto de Cristo, arrastando os pés até ao calvário, uma senhora em cadeira de rodas, boca deformada, perna corroída, e aqueles dois: a mesma imagem, com algumas décadas de distância um do outro. O mais velho, muito velhinho, calças e camisa impecavelmente passadas a ferro, cabelo cuidadosamente penteado. O nariz preso a uma caixa de oxigénio, tossia forte, mas também fracamente, enquanto o mais novo lhe estendia lenços de papel atrás uns dos outros e o ajudava a limpar-se a cada acesso. “Quer outro, pai?”, e nisto os olhos envidraçados caídos nele, assim quieto e embevecido, num desvelo tão absoluto, que eu, que agora tenho uma pedra no lugar do coração, não resisti a molhar as pestanas.


10/08/2022

Invisibilidade indolor

(Este blog parece uma página de Instagram que tive que deixar de seguir porque a autora, apesar de muito cómica, era assaz aborrecida: cada vez que “abria a boca”, era para dizer “Eu sou vegan”. Já eu, cada vez que escrevo um post, digo “Eu tenho cancro”. Cada parva com a sua mania.)

Passei a conhecer as pessoas por outros prismas, como se me tivesse sentado numa cadeira elevatória e giratória e pudesse andar-lhes a toda a volta, vê-las por quadrantes nunca antes imagináveis porque impossíveis, olhá-las de cima, de viés, do avesso, à socapa. Sentir-lhes, assim, as fragilidades, as cobardias também, as fraquezas, as falhas. Claro que a inversa também é verdadeira, e foi-me igualmente dada oportunidade de conhecer a dimensão inumana — no sentido positivo do termo — de outras, por tão generosa e abnegada. Curiosamente, nestas últimas incluem-se pessoas da blogosfera, ou daquilo que resta deste nosso recanto, que vieram dar-me um abraço muito mais apertado e definitivo do que o de outras da minha vida real.

Antes que haja por aí alguma confusão, estou a lembrar-me concretamente de uma amiga de amiga, que se cruza comigo no ginásio e que, desde que o mundo soube, logo a seguir a mim, que eu estava doente, simplesmente deixou de me falar. Não que antes travássemos diálogos muito profundos, basicamente não passávamos do “olá”, ou, no limite da loucura, algo acerca de treinos ou da nossa amiga comum, mas agora julgo que me tornei invisível, pois a criatura passa por mim e desvia o olhar, ou, melhor ainda, olha-me à transparência, eu feita cristal bonito que se quebra quando cai.

Não sei como, nem se vale a pena, explicar a estes seres que o que eu tenho não se pega. Que o que eu tenho precisa de palavras, sobretudo se forem ditas por mim, sobretudo se forem um bocadinho mais do que chavões, andrà tutto bene. Que o que eu tenho se chama cancro, não tumor, não problema, não doença, só. Eu chamo o boi pelo nome, nada temam, que não desmaiarei se disserem “cancro” à minha frente. Cancro, cancro, cancro. 

Compreendo que, sem saber o que fazer ou dizer, haja quem prefira não fazer ou dizer coisa alguma. Eu também já fiz isso. E agora sei o quanto dói essa forçada indiferença. Mas também sei que, quando nos tornamos invisíveis, deixa de doer.


09/08/2022

Estar, ser, parecer

Na Radioterapia todas as mulheres são iguais: cabelo muito curtinho, roupa prática — fácil de despir, geralmente da cintura para cima —, sandálias rasas. Uma usa meias cirúrgicas bege debaixo das sandálias, os dedos à mostra, as unhas pintadas. Algumas ainda com a touca oncológica, um lenço, quase todas com as sobrancelhas em tímido renascimento. Os homens também são todos iguais, mas a eles bastam dois centímetros de cabelo para já não “parecer”. 

No salão de espera, estão apenas duas perucas: a de uma senhora de idade, que se maquilha até à exaustão, usa vestidos de flores e sandálias douradas, e a minha. A dela é sintética — sem movimento, com o brilho do nylon, parece (e, eventualmente, estará) carregada de laca —, porém combina na perfeição com todo o restante cenário. Tem franja, é cor de cobre, bate nos ombros e é enrolada para fora. Há uma harmonia com as sobrancelhas tingidas a lápis, os lábios de borrões vermelhos, o blush gritante, o sorriso exausto mas ingénuo. Eu levo os meus vestidos de sempre, a bela Natércia e sapatos fechados, sob a forma de alpercatas, claro que de cunha de oito centímetros. Não posso mostrar as minhas unhas dos pés. A quimioterapia simplesmente destruiu-as e o meu organismo ainda não as reconstruiu.

Um a um, somos chamados lá para a câmara de ficção científica. As técnicas muito técnicas, como treinadores de futebol, há muito pouco espaço e tempo para uma piada, um sorriso, uma gargalhada. As minhas ficam todas suspensas no nada. Estou rodeada de pessoas que consideram que alguém com cancro tem que estar sempre aos miares e suspiros. E não há lugar para um bom bâton borrado pelos dentes afora, nem para o campo de flores que um vestido pode carregar.


05/08/2022

Descalça

De entre outras, mais ou menos criadas por mim, tenho usado muito a metáfora do caminho de pedras pontiagudas que percorro descalça. Às vezes até tenho superstição em abrir a boca para falar, pois que até as imagens figuradas que construo vêm ter comigo: a quimioterapia sensibilizou-me mãos e pés, julgava eu que se limitaria à infecção nas unhas, afinal deu-me de graça plantas e palmas ultra sensíveis, com uma maravilhosa pele que não devo ter desde o berço, e que, apesar, contudo, todavia, mas, porém, não aguentam qualquer calçado e, uma vez descalça, qualquer piso.

Isto para dizer que a enfermeira que me fez a consulta preparatória de radioterapia me deu carta branca para ir à praia até começar os tratamentos. O que é que ela foi dizer. Fui, e fui à grande: alugámos colmo, almoçámos que nem reis (ignoremos, só agora por momentos, o facto de o meu paladar estar do avesso e um hambúrguer de salmão com batatas doce fritas poder saber-me a uma barra ferrugenta), fomos mergulhar até lhes perder a conta. Pedi os três desejos da praxe, que, se fosse uma pessoa normal, pediria “a cura, a cura, a cura”, mas sou tão prosaiquinha que “desperdicei” (aos olhos e sob o ponto de vista de humanos mais elevados) um deles a pedir “que o meu cabelo cresça depressa”. Só me danei por não ter definido “depressa”, por ser um conceito tão vago e vasto, que lá quem recebe estes pedidos tanto pode ser uma lesma e pôr-me o cabelo a crescer ao ritmo dos elevadores do IKEA, como pode ser um hiperactivo e amanhã acordar qual cavernícula. Também nadei, apesar de frequentar uma praia cujo mar não permite grandes braçadas, mas era verem-me sem Natércia, a nadar enquanto levava tareia das ondas, e teriam a imagem perfeita de um pato feliz.

A saída do mar, de todas as vezes que lá entrei naqueles dois dias, custou-me muito mais do que a entrada: havia uma barra larga de conchas partidas, que todas as pessoas passavam como se fosse areia fina, mas aqui à princesa do pé fino causaram dores excruciantes, rés-vés a lágrima bem salgada. Então, ofereci pela saúde dos meus filhos. (Caluda, eu é que sei onde é que gasto as minhas fichas.)

Portanto e à conclusão, corrijo a metáfora: estou a percorrer, descalça, um caminho de conchinhas partidas. 

(Pode ser que, para o ano, já tenha pés de tairoca, com aquele calcanhar de queijo de Serpa, ai que delícia.)

04/08/2022

Radio gaga

Chego à sala de espera — que é mais um salão, dadas as suas medidas, talvez uns cem quadrados, dava para um belo bailarico, não fora as circunstâncias — e apercebo-me de que está bastante compostinha. Faço aquela matemática básica, um terço são lugares vagos, metade das gentes podem ser acompanhantes. Mesmo assim, imagino que vou ali passar o resto do dia e uma parte da noite e pergunto à do balcão se está muito demorado, ao que ela me responde a frase que está ex aequo com “só há o que está exposto”, “esse artigo foi descontinuado” e “isso é com a minha colega”: “A senhora tem que esperar a sua vez”, logo a mim, que adoro retóricas. “Claramente, isso não responde à minha pergunta”, “Mas é que eu não sei”, “Acabou a conversa”, e ficámos por aqui. Pena que também só haja o que está exposto nestes lugares, que não descontinuem estas azedas que estão sempre em modo de frete no seu local de trabalho e, efectivamente, tudo deve ser assunto para a colega, que não está à vista porque nem sequer existe.

A Radioterapia é detestável desde que entro até que saio. O pessoal não tem a noção que trata exclusivamente com pessoas com cancro, como acontece na Oncologia. Já lá dentro, em vez de enfermeiras e assistentes, existem técnicas, com a simpatia de um empregado de mesa. Zero empatia, zero humanidade, é um corre-corre de despe, deita, posiciona milimetricamente para que os raios que partam a possibilidade de o cancro voltar funcionem, luzes e máquinas a toda a nossa volta, uma placa redonda, uma placa rectangular, uma outra que parece um ovo de avestruz, as técnicas saem da sala e uma delas transforma-se numa voz, “Dóna Maria, suspenda a respiração”, “Agora tranque”, e a p. da centrifugadora a fazer girar as placas à minha volta até à asfixia, “ai, que morro da cura”, parece que estou numa daquelas competições absurdas que fazíamos em miúdos, de atravessar a piscina debaixo de água até ouvirmos um gemido que nos saía da garganta, a mim só me apetece fugir dali a bater o dente e correr para os braços da minha mãe, que me espera com uma toalha seca e macia, como macio era o abraço dela.


03/08/2022

Hoje ando em limpezas (e não são de Verão)

Fartei-me de páginas que andava a seguir, de mulheres com cancro, e hoje des-segui-as todas. Só faltou a Fernanda Serrano, que é um caso de recuperação, bonitíssima (ainda mais ao vivo do que em fotografias), e a quem outro dia descobri uma cicatriz na axila igual à minha, pelo que me senti menos desanimada com o assunto. De resto, foi tudo. É com algum remorso, mas também tranquilidade que confesso que nunca segui @ilovecancer, porque o nome da página me deixava demasiado apreensiva e incrédula. I hate cancer, want to kill it. Até a queridíssima Joana Cruz foi na cheia, zanguei-me com ela desde que cortou o cabelo, ainda ele estava curto. E uma outra, muito animada, sempre a rir muito e a achar um piadão às fases todas desta merda. No mesmo barco meti uma que foi mesmo mastectomizada e passa a vida a ralhar com a vida e os seguidores. Compreendo-a, também me apetece acabar com o mundo à dentada e à unhada, só não me apetece aturar as birras das outras, se nem as minhas aturo.
Outro dia falei com uma amiga que passou por um processo semelhante ao meu pouco tempo antes de mim, a quem o cabelo e todo o pêlo caíram até à lisura — ao contrário de mim, que mantive o meu pente um do início ao fim da quimioterapia, sem uma pelada, ou seja, não caía mas também não crescia —, e que começou a rapar quando ele começou a crescer porque não aguentava ver metade branco e metade escuro, “parecia uma porca malhada” (sic). Até tive vontade de lhe bater.
Todos os dias vou verificar se o meu cabelo já cresceu mais um milionésimo de milímetro. Há dias em que sim, há dias em que não. E esses são duros como o caminho de pedras pontiagudas, descalça, que tenho percorrido. Chamem-me fútil. Digam-me que isso não é o mais importante. Digam que “é só cabelo”. E que “cresce num instante” (um centímetro por mês, vai demorar até bater nos ombros, não?). Claro que sim, tendes razão. Mas eu quero o meu cabelo de volta. É a minha fuga? Pode ser, respondam os psis. Enquanto me entretenho com isso, não penso no cancro. Mas, de todas as dores por que tenho passado, esta é de longe a que me dói mais.