A cadeira de rodas dela impedia a minha saída da loja onde se toma café, se compram revistas e jornais, se joga a sorte maldita de nunca se acertar nos números certos, mas hoje era dia de fezada (prima demasiado afastada da fé), e tinha que jogar os dados para criar a infinitésima possibilidade.
Parei diante dela, que fez tenção de recuar a cadeira para eu passar, e pedi que não o fizesse, pois podia esperar, mesmo não podendo. Uma cara muito negra, muito linda, rasgou-me um sorriso brilhante de pérolas brancas, e pediu para o balcão, logo ali, uma pastilha elástica.
De morango, especificou. E ele, que podia ter aproveitado o meu braço estendido, cometeu a delicadeza de sair de detrás do balcão para lhe ir entregar a grande e doce encomenda à mesma mão que segurava a pequena e fria moeda. Rejeitando o pagamento, sorriu de volta ao sorriso ainda não desfeito dela que eu entendi meu — quem sabe nunca se desfaz —, e disse
Não levas nada,
e eu entendi que não levava mesmo nada, para o tanto que ali deixava. Foi o instinto — não sei qual deles —, ou foi uma força qualquer que me empurrou para o balcão, para pedir, exactamente, uma pastilha de morango. Paguei-a então com moeda metálica, por ali não deixar nada.
Já na rua, toda cheia de sol, ouvi-lhe no mesmo sorriso,
Desculpe...
Ora, de quê?
Se levo tanto.
Deus, ou outra força qualquer, permita que não ganhe o prémio do jogo esta semana.