Imagina que se dá o momento em que metes a chave na fechadura, ela dá duas voltas lá dentro - e, com isso, te apercebes de que não está ninguém em casa -, entreabres só um bocadinho - porque sabes que as gatas têm aquela mania de ir passear para o patamar das escadas (serão só as minhas que manifestam este fremente desejo de fugir do lar?) e depois é um sarilho grande para convencê-las a voltar - e sai-te a jacto, ligeira e silenciosa - na verdade, com um "prrr" - a Molly, logo escadas acima. Nem pousas a mala, nem despes o casaco, corres atrás dela, mas oh, engano!, ela sobe mais uns quantos degraus, por isso mais vale ficares cá em baixo a praticar psicologia felina, "Anda cá, vamos para casa, Molly!", mas o bicho nada, nem desce nem sobe mais (vá lá...), olha-te apenas por cima do ombro com aquela desconfiança e soberba, do alto dos seus olhos azuis de gelo, como quem diz "Vai tu, daqui não saio, I've got stuff to do upstairs", ainda tentas a solução radical, que é fechares a porta de casa, como se faz às crianças teimosas, "Olha, ficas aí, que eu vou para casa. Adeus", mas depois lembras-te do dia em que ela ficou mesmo e, passadas duas horas (cálculos muito por alto), o vizinho de cima veio perguntar-te se o gatinho que tinha lá à porta a miar, e ao qual já havia dado leite e pão aos pedaços (e a lontra devorou como iguaria sem igual) não seria teu, e, aflita com a repetição do episódio (se bem que ela talvez não, vai-se a ver e curtiu da refeição alternativa), voltas a abrir a porta e sai a Mia, não a jacto, mas igualmente ligeira, e efectivamente silenciosa, sem "prrr".
E ficas sozinha no patamar, tu e as tuas gatas que, por acaso, se detestam. Não se odeiam, mas não se dão, o que equivale quase ao mesmo.
A Mia dirige-se para a escada que sobe, encara com a Molly, e os dois rabos fazem-se num comovente e lustroso pompom. Uma das duas, ou as duas, assanha-se para a outra, e tu pensas que é capaz de ser melhor saíres da jaula, e os leões que se entendam, pois, se for para ficares sem cara, mais vale ires para o lar e esqueceres o dia em que quiseste adoptar gatos. Já não te bastavam quatro filhos nascidos no espaço de seis anos, para ainda te ires meter noutros trabalhos quase semelhantes.
Mas depois, gostas delas. Uma é parva, a outra está doente, porém gostas das duas na mesma medida. E então, raciocinas. Com a Mia, tudo é mais fácil, quanto mais não seja porque pesa metade do que pesa a outra fat, que é agressivíssima e só a ideia de lhe pegares já te arrefece o sangue-frio. Pegas nela por baixo, com cuidado para não lhe magoar a barriga, e carrega-la para dentro de casa, sob protesto (a assanhar-se, aqueles "rugidos" dos gatos), feita manifestante activista e rebelde sem causa. A repetição da fuga para fora de portas é bastante rara, por isso podes descansar de uma.
Dona parva continua estática, sem vontade ou iniciativa de sair do degrau onde se instalou a mirar a paisagem. Não é por acaso que os suricatas se chamam assim. Ponderas o truque do papel amachucado em forma de bola, o truque do boneco dela (um pinguim vestido de Pai Natal, don't ask) atirado para dentro de casa, mas sabes que, cada vez menos, se deixa enganar, e isso pode ser uma perda de tempo que a fará subir mais degraus. Então, lembras-te do truque dos gatinhos a miar, sabes que é um golpe baixo, mas que resulta em pleno: "Gatinhos a miar" no Google, Ai-fostes com o som no máximo, e esperar.
Lá veio ela, percorrendo todos os cantos à casa até eu desligar aquilo, sei lá se para brincar, ou então para se assanhar também para os gatinhos que procurava e não estavam em lado nenhum.
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