31/01/2018

Amor em Celsius

Todas as noites, antes mesmo de me deitar, percorro a casa e vou dar beijos de boa noite a todos os meus quatro. Longe vai o tempo em que aconchegava lençóis, contava uma história — eu às meninas, o pai ao rapaz, alternadamente —, voltava a entalar os lençóis debaixo dos colchões, dava beijinhos, uma última atenção, "Dás-me mais um beijinho?"; "Cheiras tão bem..."; "Amanhã levas-me à escola?"; "Tens frio?", apagava a luz (deixava uma de presença, nessa época) e saía, se não cem por cento tranquila, por não ser da minha natureza, pelo menos apaziguada, num misto de cansaço e amor, que é aquela combinação implosiva que nos dá alento enquanto os filhos são pequenos. 
Uma vez, estava à porta do quarto das três, não havia nada que me indicasse que havia qualquer coisa de anormal, estavam todas deitadas há umas horas, apenas a penumbra azul da fraca luz, e recordo-me de me sussurrar, Vai lá. E aconteceu — coincidência ou não — uma delas estar com febre.
Lembro-me de a minha mãe nos beijar na testa com alguma frequência, de sentir o mimo mas também a demora, e, uma vez ou outra, após esse beijo, constatar: "Tu estás com febre". 
(Às mães incorpora-se-lhes um termómetro nos lábios quando os filhos nascem, faz parte do kit.)
Os beijos de boa noite que dou aos meus são sempre no cabelo. Porque têm cheiros diferenciados, que eu distinguiria entre si e entre milhares, porque (ainda) me cheira a crianças, porque não peço em troca, basta-me dar, e o cabelo é o local ideal para a oferenda sem retribuição.
Dei-lhe o beijo no cabelo, disse Dorme bem, meu amor, e fiquei parada na hesitação. 
Vai lá.
Usei o termómetro da boca de mãe, "Tu estás com febre". 
Que não sei, que talvez, que pode ser que não. Usa o outro, então. 
38,1º.

30/01/2018

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 60

Então, o CRF.
O Rock in Rio não é o RIR? O Cascais Rock Fest passa a CRF, porque eu assim o entendo.
Tudo se processou no salão preto e prata do Casino do Estoril. E, por isso, primeiro drama existencial clássico numa genuína blogger: o que calçar? É que uma pessoa não vai para o PP calçada de qualquer maneira. 
(O que vestir, estava semi-determinado: não repetir o erro que cometi aquando da primeira vez que atravessei as portas daquele salão, em que ia toda vestida de preto. E prata. Juro. Tenho pics, para jamais esquecer. Ia ficando camuflada naquela ambiência, tipo os soldados no mato, mas em bom.)
Equacionei o téni fashionerer, que iria permitir-me dançar e pular sem desarticular os joelhos nem desancar os dedos dos pés, mas temi-me que me barrassem a entrada [porque o "segurança" médio destes locais não distingue um téni Pepe Jeans* de uma sabrina da Primark* (4 euros), nem de um salto agulha com compensação de 5 centímetros da Seaside*, e é capaz de deixar entrar a Sheila Soraia e barrar a porta à pessoa humana, que fica a discutir direitos, liberdades e garantias do cidadão de um Estado de Direito), resolvi-me pelo botim de salto médio, que foi o que ia sendo a minha desgraça. Posso afirmar com alguma segurança e margem de erro igual a quase nada que antes de a primeira banda actuar, já os meus dois pés, espremidos num torno, gritavam "pára, pára, eu chibo tudo!", o que, desde logo, faz considerar a hipótese de que algo vai correr mal, ou sequer correr, assim haja alguma situação de emergência.
Bom, não interessa. Eu sofro de minudências.
Julgo ainda, ou muito me engano, que sou a única pessoa do Planeta que tem vertigens no chão do Casino do Estoril. Aquele reflexo do tecto no ladrilho brilhante, é coisa para me pôr a gemer "Ai, vou cair. Ai, que caio". O truque é olhar para a frente e defecar para a possibilidade de haver por ali um degrau. Ou uma escadaria. Sem patamar de segurança.


Já lá dentro, apercebi-me de que, afinal, o téni (qualquer téni) tinha entrada livre, assim como o xanato, bem como a soca. Na sexta-feira, a plateia era constituída, maioritariamente, por idosos na minha faixa, dois terços de homens para o restante de mulheres. Até onde a vista alcançava, as cabeças eram brancas (ou cinzentas), ombreando com carecas, num grafismo harmonioso bonito de se ver.
Foi, portanto, um festival para os pais das crianças que frequentam os summer fests desta vida. E foi o primeiro, que há-de ser, se alguma lógica ditarem estas coisas, aquele que aprende com os próprios erros, para não os repetir nos seguintes: faltavam assentos. Havia demasiada gente sentada no chão, o que pode significar que, para o ano, se calhar já punham umas cadeiras lá pelo meio. Poltronas. Chaise longues. (A malta — e falo por eles — já não tem 20 anos.)
Não falei da música, pois não? Também não pode ser agora, que isto já vai longo, e eu, para variar, perdi-me no tema. Até mais, dudes.

* NMPPI nem para me calar

Deslise é o quê? O contrário de alise?

Revista Lux Woman, Fevereiro de 2018, pp. 84

27/01/2018

Já somos 100!

E quem é que havia de me sair na rifa [dirigido a quem é, todo o cuidado é pouco. "Sair na rifa" não cheira a perversão? E "cheira a perversão" também não cheira? E "cheira"?] como centésimo seguidor? El grandessíssimo Patife, aquele que fornica-fornica, faz-o-amor-faz-o-amor, acasala-acasala, e que fez um regresso [é, não é? É, não é? É...] triunfal por estes dias, após anos de ausência (dele) e saudades (minhas, por exemplo), começando logo por, num gesto de grande abnegação como o são todos os seus, se ajuntar ao blog da pessoa.
(Eu tive tanto cuidado com as palavras, e todo o texto me soou a deboche. Mas está clean, não está?)
Bem vindo, Pat, dá um agito aqui na blogobola, a ver se isto anima!
(Continuo a escrever com pinças, e, mesmo assim...)

26/01/2018

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 52

Ou talvez devas.

Só não acerto no Euromilhões. 
A troca de mensagens que segue foi antecedida pelo seguinte diálogo:
- Estou sem xeta no porta-moedas, não me apetece ir levantar nem pagar com multibanco duas merdinhas que são precisas lá em casa. Dá-me aí.
(Pareço uma assaltante, eu.) (Às vezes, literalmente.)

Era para correr duas ou três capelinhas, alface aqui, ervilhas congeladas ali, e, diante dessa perspectiva, resolvi meter-me no supermercado, onde se concentra tudo e mais um par de botas. (Também literalmente.)
Levei 10 euros no bolso, pus no cesto o que havia a pôr, mais uma coisinha aqui, outra ali, faltam legumes para a sopa, couve-flor, abóbora, cenouras, olha courgete desidratada, xacá experimentar, quase tudo muito saudável, caixa com ela. 
Conta final: € 9,99.


25/01/2018

As coisas que eu vou desencantar ao baú... # 12

Desenhado em 16.02.2011, através de um programa, Bitstrips, que já não existe. (Portanto, escusais de ir a correr tentar fazer lindinhos com ele à pala de minhas super inestimáveis dicas, que, quanto a este, capute.) (Mas vá, que eu não sou assim tão pérfida. Se desejais assim com tanto ardor brincar à bonecada online, instalai este, que deve ir dar ao mesmo. Eu não experimentei.)

Hã? Foi só mudar-lhe o nick e ficou como novo, e actualíssimo.
Já na altura, vejam bem ao tempo que isto foi, usava e abusava de parênteses rectos. 

Então, vamos lá a aprender alguma coisa hoje, a ver se nos entendemos quanto aos rectos e quanto aos curvos, em se tratando de parênteses, aqueles que nunca caem na lama. Ou não deveriam.


23/01/2018

Três cartazes à beira da estrada

(se acharem que é spoiler, é não lerem # 3)

Por acaso, não venho para aqui contar o filme. Felizmente, sou daquelas pessoas que não sabem contar filmes. Assim, livro quem comigo priva de altas secas (ou há dúvidas quanto ao aborrecimento de ferro que são os relatos de filmes/férias/nascimentos/doenças?) (Hah, já cá faltava a irreverente a abanar isto tudo logo pelas 9 e picos da madrugada.) (Toca a descolar dos leitos, mandriagem!)

Essencialmente, venho falar do papel da Mildred Hayes, ou da exímia representação da actriz Frances McDormand. Muito pouco conhecida do pequeno público que é o nosso, imagino que o mesmo se passa nos Estados Unidos, pois, por pesquisa pouco exaustiva, basicamente se encontra este enorme talento no filme 'Fargo', dos idos 1996. 
Esta gigantíssima mulher tem sessenta anos, não fez uma única plástica (ou, se fez, foi "corrigida", maquilhada, para este filme), aguenta duas horas de exposição solar sem maquilhagem (ou, lá está, tão bem maquilhada que parece não estar), e esse "pormenor" é o que transmite em pleno o drama, a raiva, a revolta, a luta, e depois o quase apaziguamento, a conformação, a aceitação das coisas como elas são. 
Provavelmente, a partir de agora vê-la-emos mais vezes, nos próximos dois, quatro anos. Tal como aconteceu com Octavia Spencer, a partir de "As serviçais". Vimo-la depois em "Elementos secretos", podemos vê-la agora numa m. de ficção científica, "A forma da água", que, a avaliar pelo trailer, só se aproveita mesmo a presença dela (e também a música que se ouve no início do trailer, que, ou muito me engano, ou é Glenn Miller). Embora muito mais nova do que Frances McDormand, terá, provavelmente, um tipo físico — chamemos-lhe assim — que não se adapta a muitos papeis, e isso, como sabemos, é demolidor em Hollywood. 


Isto não é um conselho, é uma ordem: ide ver. 
(Ah, se tendes filhas, preparai o estômago + coração.) (Isto foi spoiler?)

22/01/2018

Na senda de "Sou só eu?" # 12

Que vejo um saco de papelão, cheio de coisas lá dentro, despejado no meio da estrada (sim, pois, ainda agora...), um saco do Mc com seu respectivo lixo, e, ao longe, no relance da corrida do carro, me parece um cão? Até completo o filme: um pequeno labrador bege, enrolado e morto, apenas uma criança? E sofro ali uns instantes. 
Que vejo um trapo preto caído na berma e me parece um gatinho pequenino, enrolado e morto, também ele apenas uma criança? E dá-me um frio na barriga, uma pancada na cabeça.
Que vejo um trapo, um desperdício daqueles da mecânica automóvel, à beira-passeio, e me parece um cão, um gato, não sei como não uma ovelha, ou 'ma velha, mas não, pois talvez seja pequeno demais para isso? E é o susto, o calafrio.
Que vejo um saco de plástico com um conteúdo qualquer (lixo orgânico? Roupa suja? Um tricot inacabado? Uma feze?) atirado para junto de um vidrão (expliquez-moi cette bêtise), e acho logo que pode estar um animal morto lá dentro? E viro a cara, para evitar prolongar o nefando momento.
Que vejo qualquer molho de penas amontoadas num recanto da sarjeta, e tento adivinhar se foi em tempos idos, porém recentes, o canário, o periquito, o bico-de-lacre, o papagaio de alguém, evadido das grades e correntes que o detinham, e cuja breve liberdade se transformou num voo picado com aterragem esmagadoramente infeliz? E "ai-não-quero-olhar!".
Que vejo um pombo assassinado asfalto afora, ainda uma asa no ar, tamanha foi a traulitada, e, ainda assim, também me condoo?
Que vejo um rato esmagado [percebe-se que é um rato derivados da cauda, que fica sempre inteiriça] algures no passeio (esta cidade é uma verdadeira metrópole, há um nico de tudo) e penso "ai-coi-ta-di-nho"?
Que vejo, vá, qualquer manchinha na estrada, e já acho que vou assistir a uma imagem traumática, que me perdurará por tempos infindos até me esquecer de mim e de tudo, mas daquilo não?

[Lisboa é uma cidade tão suja. Isto sim, dói-me dizer, mas é tão verdade.]

21/01/2018

Hoje percebi a acepção estrita de vergonha alheia

À frente de Rosinha, um carro branco, a circular a uma velocidade normalíssima — uns 30 km/h — para a rua que era, estreita, cheia de passadeiras e de pessoas, com uma única faixa de rodagem ocupada por carros parados em segunda fila. Por isso, era previsível que tivéssemos que parar uns metros adiante, esperando que não viesse nenhum no sentido contrário, para podermos ultrapassá-los. Mas, ainda antes, uma passadeira de peões, onde iniciavam o atravessamento um senhor com alguma idade e um jovem pai com uma criança ao colo. O condutor do carro branco aproximou-se da passadeira quando as três pessoas já se encontravam a meio dela, e simplesmente (?) contornou os peões pela esquerda da faixa, entrando em contra-mão, para poder continuar a marcha. Ficaram os dois adultos parados, não sei se estarrecidos, mas certamente estáticos, a olhar para o carro, que seguiu. 
E seguiu à minha frente. Ultrapassou, na mesma calma velocidade, os carros parados em segunda fila, e parou no semáforo vermelho, logo adiante. 
E eu a fritar raivas contra quem acabava de fazer tal coisa. Vi-lhe no retrovisor os óculos e parte de um rosto feminino, que tanto podia ter 30 como 50 anos, ou mesmo mais. Ao menos que fosse uma anciã, distraída e sem reflexos, daquelas com que nos cruzamos todos os dias e até nos benzemos só de pensar.
O sinal verde abriu e ela não avançou. Fiz o que nunca faço, que foi apitar-lhe. (Normalmente, dou-lhes luzes até os encandear de nervos.) E fiz aquele gesto de impaciência, os dois braços no ar. 
Então, ela fez-me adeusinho com a mão direita e ainda fiquei mais irritada. Praguejei, com a solidária condescendência de Rosinha, que "Tinhas tanta pressa lá atrás, que só faltou passares por cima das pessoas, e agora adormeces no semáforo. Cabra." [Eu sou assim, esta lady no volante.] Seguiu, contornou à direita, depois à esquerda, depois à direita, e entrou na minha rua. Estacionou, e caíram-me as bolinhas dos olhos ao chão, quando me apercebi que era a minha vizinha dos tabuleiros
Fiquei tão envergonhada por ela.
Parei o carro uns metros adiante, não esperei que esperasse por mim, abri o porta-bagagens e fiquei a fazer tempo, fingindo que remexia em coisas invisíveis. Não quis encontrá-la naquele momento, pois conheço o tamanho da minha boca e a distância a que ela está do coração. E não havia nada de simpático que conseguisse dizer-lhe naquele momento. Mas juro pela minha saudinha que não foi por temer que se acabassem os tabuleiros. 
Que vergonha a minha. Que incivilidade a dela. E moramos nós sob o mesmo tecto.


20/01/2018

A minha vocação (perdida) para porteira

Numa ombreira de grande afluência de mulheres como é a de um balneário, cruzam-se pessoas de todas as espécies e, quem sabe, com várias moods, que serão as do momento/dia/fase da vida/m. de feitio. Pessoalmente, prefiro balneários sem porta, como era o do outro ginásio que frequentava antes deste. Se algum arquitecto me estiver a ler, por favor, atente nisto: esqueça a porta do balneário. Ela é o pomo da discórdia para pessoas como eu. Quanto aos balneários masculinos, desconheço como se processa o encruzilhamento das personagens, mas imagino que é bastante mais eclético, até mesmo porque eles se mandam lá para as respectivas genitálias com uma frequência avassaladora, quando não verbalmente, com o gesto do olhar.
Vou, então, tentar elencar exaustivamente as diversas categorias, e logo me darão razão:
1. A que abre a porta para entrar, puxa-a o estrito necessário para passar o próprio corpo, entra e larga-a logo, porque a p. da porta lhe queima as mãos;
2. A que abre a porta para entrar, verifica pela visão periférica que tem alguém atrás (chatas como eu), mas, como alguém um dia lhe disse "Não és criada de ninguém", larga a porta mesmo a tempo de quem vem atrás levar com ela em cheio;
3. A que está atrás de ti, espera que tu abras a porta para entrares, tu segura-la para que ela entre, e nem a ponta do dedo usa para a segurar quando passa, fazendo com que fiques tu a segurá-la enquanto a princesa passa. E não agradece;
4. A que, quando abres a porta para entrar, vem a sair e tem o requinte de malvadez não só de não segurar a porta, como também de passar antes de ti. E não agradece;
5. A que, quando abres a porta para sair, entra de rompante, e, de repente, já vem em grupeta de duas ou três, e passam todas, aflitinhas e com pressa de chegar a horas à aula/ficar rapidamente fits e tonificadas/cagar;
6. A que, quando lhe seguras a porta, espera a sua vez, mas esquece-se de agradecer. Esta é menos grave, mas é parva na mesma;
7. A que, quando lhe seguras a porta, espera a sua vez, agradece, mas larga a porta em cima da desgraçada que vem logo a seguir, denunciando uma fraca capacidade de aprendizagem;
8. A que abre a porta, vê uma senhora de cabelos brancos a pretender sair/entrar e não lhe dá passagem (true-true);
9. A que espera que tu abras a porta, passa à tua frente e diz "Ai, desculpe". Terapia, já;
10. Tu, que abres a porta. E um dia a arrancas com os dentes, só da p. da enervadeira que a p. da porta te provoca.

19/01/2018

And those two awkward moments # 44

em que, a propósito da mesma fotografia, baralhas duas pessoas diferentes?
Foi um segundo, em que estamos cinco: toda a minha criação e eu. Foi captada ao calhas, embora por quem sabe fazê-lo, estamos apertados no cubículo que é o elevador do prédio onde moramos — e onde já coube um carrinho e dois, um carrinho e três, onde já coubemos os seis também —, mas retrata, literalmente, um momento bom, e é uma daquelas fotografias que eu simplesmente adoro. 
Por estar tão actualizada (é da época do Natal), mostrei-a a uma amizade recente, brasileira, para que visse a minha obra de criação, dada a curiosidade que demonstrou. Apontando para mim, disse:
- Essa aí é a sua cara. 
Nada mais certeiro.
Uns dias mais tarde, a mesma cena com outra pessoa que, olhando para a fotografia, perguntou:
- Mas, afinal, eles são quatro ou cinco?
Isto dá-me que pensar na diferença entre a imagem que "vendemos" aos outros e a nossa realidade. Eu não ando cá a enganar ninguém, what you see is what you get, mas penso muitas vezes se quem me lê e quem me vê imagina que eu sou mais nova do que efectivamente sou, por conta de uma embalagem que eu, eventualmente, tenho sabido embrulhar razoavelmente. Mas fazer crer, dar a entender, às vezes mesmo afirmando com os dentes todos, roçando as raias do ludíbrio, para não lhe chamar mentira deslavada, isso não faço. Essencialmente, preciso — porque me dá um grande gozo — de me enganar a mim mesma. Quanto aos outros, espero que não se sintam intrujados, mas, se  isso acontecer, paciência: desatenção vossa, eu avisei.




18/01/2018

Sempre disse que um dia

Não sei se isto é só um balancé de final/início de ano.

Em 2017 realizei um sonho muito antigo.
(Sabem aquela coisa do "Sempre disse que um dia..."? Até que é chegado o dia: realizamo-nos uma vontade, já tão antiga que nem sabemos por que é que a mantemos, a não ser porque um dia prometemos a nós mesmos e contas temos a prestar-nos.)
Não sei quantos sonhos ficaram por realizar, não sei quantos destruí. 
Vamos supor que realizo um sonho, desses grandes, mesmo a sério, por ano. 
Se viver oitenta anos, terei realizado oitenta sonhos no final da minha vida. (Imagino que os dos primeiros anos de vida se terão todos prendido com maiorências do estilo "encontrar a chucha perdida" ou "ser dona de todos os sorrisos da minha mãe".)
Não acho muito, visto assim. Devia começar a contabilizar quantos sonhos destruo, porque, mesmo que seja "só" um por ano, outros oitenta parece-me uma conta demasiado inflaccionada.

16/01/2018

Então, sobre aquilo, e só porque sim

Crianças malcriadas existem e sempre existiram, assim como mães sem peva de talento para o serem; 
De gente que tem filhos e depois se arrepende, está o Mundo cheio. Ainda há muito quem pense que é só fazer e depois logo se vê. Não duvido nada que haveria quem, se pudesse, atiraria a criança de volta para dentro da maternidade, ou lá de onde é que elas vêm (como aquele homem fez ao cão); 
Se há alguém que, aos sete anos de uma filha, lhe perdeu o "controlo" (seja lá o que isso for), imagine-se aos dezassete. A má notícia é que tende a piorar;
Há uma linha que separa o normal do anormal, hélas. Aqueles níveis de selvajaria não são coisa para ser lidada por uma psicóloga. Existe um ramo da Medicina, que é a Psiquiatria, que dá respostas capazes a pessoas assim. Ambas, mãe e filha, já de colete de forças;
O pai da criança, que já deve ter-se autovasectomizado com uma lâmina romba e ferrugenta, tem lá no filmeco material suficiente para, em querendo, requerer a guarda exclusiva e definitiva da selvagem filha;
Se eu fosse aquela filha, apresentava uma queixa por violência doméstica contra o pastelão da mãe;
Se eu fosse aquela mãe, apresentava uma queixa por violência doméstica contra aquilo que lhe saiu na rifa quando chamou a cegonha.

Estou a brincar. Ainda por cima, com coisas sérias. 
Não, mandava aquela mãe a uma visita guiada a Alcoitão.
Tenham juízo.

Agora sim, o Mundo está dividido em duas metades # 2

Os que sentiram o abalo e os que não. 
Desta vez, para variar, e só porque tenho a mania de ser original, sou das que não. Nem estava num ponto muito baixo da cidade, nem estava num ponto muito alto, mas, por qualquer insensibilidade que me assolou no momento, não dei por nada. 
(Por acaso, estou preocupada comigo mesma: eu costumo ser uma pessoa humana assaz sensível.)
(Também estou preocupada com os tapetes de Arraiolos. Já chega de ziguezagues.)
Em consequência, há que mandar imprimir novas t-shirts distintivas, ou, para aqueles que chegaram a tatuar o dorso da outra vez, a correcção da frase alegórica. 


(Quanto ao assunto do momento, logo vejo o que é que me apraz. Não gosto lá assim muito de encarneirar aqui na blogobola, mas por acaso até acho que tenho uma opinião.)

14/01/2018

Quanto mais danço, mais comprometo o meu gosto musical

ou

Formação versus talento

Por acaso, essa coisa do gosto musical também tem muito que se lhe diga. É quase como tentarmos perceber por que é que alguém gosta de outro alguém, que é, basicamente, horrível. Deve haver um fenómeno, ao nível do tímpano, correspondente ao que acontece com a retina daqueles que amam o feio, o antipático, o desinteligente, o que acumula tudo no mesmo pacote [uuuhu].
Posto isto, eis-me chegada ao ponto de justificação para aquilo que me aconteceu outro dia, e ainda gostei. Isto, versus o que me aconteceu hoje, e não gostei. 
Cheguei à aula de dança e quem se encontrava à porta, a receber o povo bailarino, era um instrutor, e não a costumeira. Eu já tinha tido aulas de outras modalidades com ele, por isso já me tinha apercebido de que a figura não mede bem os alqueires todos, porém é excelente, tecnicamente falando. De qualquer maneira, este tipo de pessoas faz falta na minha vida, porque tudo o que é muito previsível e direitinho, acaba por me enjoar e lá vou eu para outras paragens.
Avisou logo que não tinha formação para aquilo e siga. Arquitectou um esquema simples — lado-lado-direita, lado-lado-esquerda, repete, mambo à direita, mambo à esquerda, repete, com volta atrás —, depois outro — ao lado direita, ao lado esquerda, repete, salta, quadrado rápido, quadrado lento, chassé direita, chassé esquerda, repete — depois mais outro, e depois colou-os uns aos outros e fez um mega-esquema com eles. Durante uma hora, com o mesmo esquema, dançámos tudo o que lhe veio à cabeça em termos musicais. Levanta o vestido também. Os peitos da cabritinha, sim. Sim. É verdade. Eu já dancei Os peitos da cabritinha, e ri-me durante, e não foi (exclusivamente) de nervos. Não sei se já posso morrer feliz.


...
E a aula foi excelente, ou, pelo menos, serviu para variar.
Hoje, outra substituição, mas desta vez por uma instrutora cheia de técnica, destreza e velocidade. Dessas que se largam a dançar lá no palquinho e nunca mais se lembram que têm uma classe de algumas dezenas de pessoas à frente, que é suposto acompanharem e não fazerem papel de mera plateia, com palminhas no fim e tudo. Aos três quartos de hora, aborreci-me e bailei porta fora. E muito aguentei eu.

12/01/2018

Eliminar

Comecei outro texto, que chutei para os rascunhos, acerca dos fretes que se vão fazendo aqui e ali, para manter uns e outros contentes (?), o que se atravessa também na blogosfera, e me põe a pensar se não haverá quem me tenha no feed só para me fazer feliz (?), quem se me faça seguidor só para me dar um rebuçado (?), quem até nem me tenha na lista para me dar uma lição (?) de modéstia (?), ou simplesmente porque me odeia (!). 
Mas, parecendo que não, vivo tranquila com essa m.
Vem isto a propósito de eu ter uma conta no Instagram, por motivos que só eu sei e não são para aqui chamados, mas que, como tudo aquilo em que me meto relacionado com techno, é modesta, pobrezinha e descuidada. Tenho ao todo três seguidores e todos eles são da minha família. Sigo as páginas dos três e seguia mais outras duas até, exactamente, anteontem: uma delas era a página da cartoonista argentina Maitena
Andava eu muito desocupada da vida a passear pelo Instagram, quando me deparo com uma imagem publicada pela artista que me pôs o queixo ao nível dos joelhos: a própria, à porta de um casebre de madeira, segurando os braços de uma menina de cerca de dez anos, completamente nua. 
Nua. Nuíssima. Nu frontal, nu total, nu despido, nu descalço, nu revelador, nu incontestável, nu inconfundível. Um nu tão nu, que se via tão claramente a cara como se via o pipi da criança. 
(Naturalmente, não se trata de uma das filhas da artista, porque isto da inconsciência, quando bate, parece que nunca toca aos nossos.)
E eu, em choque, à procura do botão onde pudesse carregar para eliminar aquela pessoa da minha vida
E eu, em choque, à procura do botão onde pudesse carregar para denunciar aquela pessoa ao Mundo. 
Mas em que merda de bolha é que esta gente vive? Nunca leram jornais, nunca viram televisão, a internet não lhes chega? A sério que é possível alguém ser tão artista, estar tão alienado da realidade, que caia numa esparrela destas inocentemente, sem num único momento se questionar, ou lhe cair a ficha?
(Os seis ou sete comentários que já lá tinha, diziam coisas naquele espanhol de prata, "Como es lindo el amor 💕💗", e merdas.)
Felizmente, alguém por mim encontrou primeiro o botão de denúncia, porque a imagem desapareceu passado pouco tempo.
Infelizmente, esta pessoa tem um milhão e duzentos mil seguidores no Instagram. É fazermos contas. 

09/01/2018

Ela fala tanto # 22

Outras vezes, sou eu que falo tanto.
Não sei ter animais. Perco a conta às vezes que vou verificar se as gatas estão a respirar, perante aquela letargia que me assusta e me deixa doente.

- Não quero ter mais passarinhos presos em gaiolas. Quando estes dois acabarem, acaba-se a gaiola. O meu problema é que os passarinhos nunca me morrem no mesmo dia. Depois fica ali um sozinho, viuvinho, eu encho-me de penas, e lá mando vir outro. Depois morre o outro, fica mais um sozinho, e andamos nisto há anos. Agora olho para eles, vejo que um é muito mais velho do que o outro, tem mais peninhas brancas na cabeça e nas costas, é capaz de morrer primeiro. E fica o outro sozinho, e eu isso não vou aguentar. 

Ela ouviu-me atentamente, os olhos fixos sem sombra de crítica nem pestanejar de pasmo, e disse:
- Eu posso levar o passarinho que ficar sozinho para um senhor que mora ao pé de mim e faz criação, que ele tem uma gaiola enorme com muitos. 

Minha Bianca é uma cougar: é ela a mais velha no casal. Pode ser por isso que nunca tiveram filhos juntos. Mas nas noites de Inverno vou sempre vê-los encostados um ao outro, no mesmo poleiro, a fazerem-se volumosos para se aquecerem e para darem calor ao outro. Não suporto a ideia da viuvez do meu Bernardo. Sofro por antecipação, aliás como com tudo. Prefiro despedir-me dele em vida, imaginando que vai ter uma vida melhor do que a da solidão da gaiola, que há-de ficar ainda mais fria sem a Bianca, ainda que seja Verão, pois mesmo no Verão se aquecem encostados no mesmo poleiro. Aninham-se, na melhor acepção do termo, já de si tão bom. O meu Bernardo aprenderá a piar em galinhês, deixará de ser um biquinho-de-lacre chique, mas que tão baixo preço a pagar é esse, diante da alternativa que é a tristeza da casa vazia?

08/01/2018

... não vás ter uma recaída

ou

Axiomas muito meus

Isso, para uma pessoa ter uma recaída, tem primeiro que cair, certo? 
E depois tem que se levantar, para poder repetir a queda, ou recair. 
Também tem que ficar doente primeiro.
Depois tem que curar-se, ou, pelo menos, melhorar substancialmente. 
Só depois pode recair doente. 
Ora, eu ainda não estou no ponto de poder ter uma recaída. 
(Posso, portanto, andar desagasalhada, a apanhar frio e vento. Deixem-me.)

07/01/2018

Toma, embrulha

A pessoa tem gripe; a pessoa tem o que merece. 
Sexta-feira, chuva constante, zero paciência para usar o secador de cabelo, vai de levá-lo húmido para a rua. Logo eu, que tenho aquele preconceito
Depois, não bastante, usei um guarda-chuva que comprei numa pechincha, pequenino, maneirinho e azul, mas que, digamos, não é impermeável, ou seja, não é um guarda-chuva na sua acepção stricto sensu. Logo eu, que sei que o barato sai caro. 
A seguir, fui meter-me numa sala que tinha um termoventilador daqueles que cospem ar quente qual dragão, e vamos só supor que a minha cabeça ficou mais de uma hora na directa direcção das exalações do animal. Logo eu, que sei o mal que faz à saudinha aquecer a mona daquela maneira, pois que ninguém nasceu para fósforo. (Mas vá que me estava a saber bem aquele quentinho no cabelo que, imagine-se, continuava meio molhado.)
Não contente, peguei em mim e levei-me a passear à chuva, pois pretendia reforçar o parquímetro e tomar um café. Encontrava-me perto da Sé, e, perto da Sé, num fim de tarde chuvoso, não há nada, a não ser turistas deslumbrados e tascas. Meti-me numa, portanto. Não quero descrever o que foram aqueles três minutos da minha vida, mas estou ciente que assegurava, quando de lá saí, que devia trazer comigo, pelo menos, um nico de hepatite. 
No regresso, ao fim do dia, ouvi na rádio, que nas próximas três semanas haverá um surto de gripe no País. Lembro-me de ter pensado: "Hah."

06/01/2018

Na senda de "Sou só eu?" # 11

Hoje venho insurgir-me.
Cada vez que vou a um cinema NOS, para além de ser brindada com três ou quatro trailers — pequena tortura que chega a ser boa, pois fico com mais alguns filmes na lista "obrigatório" ou então na lista "não esquecer de não ver" —, mas aos quais não consigo fugir, uma vez que tenho vergonha (respeito ao próximo) e medo (posso ter a certeza que o chão que está à minha frente é plano, que ela é anulada por aquela outra certeza de que no próximo passo vou tropeçar/ meter o pé em falso num degrau/ cair num fosso estreito e fundo até ao centro da Terra, qual Alice, "Adeus, Dinah!") de entrar às escuras, sou igualmente agraciada com esta coisa:


Eu tenho medo. 
Primeiros: não percebo por que é que elevam o som a níveis de decibéis capazes de estoirar com os miolos da pobre assistência. 
Segundos: não percebo por que é que me tratam por tu no anúncio, se não andámos juntos na escola, não temos a mesma idade, nem somos todos bloggers. Enfim, se não nos conhecemos de lado nenhum.
Terceiros, quartos, quintos e tudo o resto: porquê o rugir de leão do dinossauro, que come e morde tudo? E as ordens, imperativas, aos gritos, de comportamentos elementares? "Desliga o telemóvel e mantém o silêncio!"; "É proibido filmar e fotografar!"; "Mantém a sala limpa!"; "Respeita as normas dos cinemas NOS!" [ou não antes as normas básicas de civismo?]; "Podes comprar o teu bilhete nos kiosks (?), na app.m.ticket (?), em cinemas.nos.pt (...), ou na tua box (?)".
[Por acaso, esta versão que encontrei no youtube ainda acrescenta "I'll be back!". Vá que nunca me apercebi disto ao vivo, lá na sala. Pois, porque ainda não estava bem clara a ameaça exterminatória].
Depois sai um helicóptero (militar?) a voar, o homem grita-me "Bom filme!", e eu fico capaz de começar a chorar alto, a chamar pela minha mãe, "Mamã, tenho medo, quero ir para casa!", mas incapaz de prestar atenção aos primeiros cinco minutos do filme, tal é a aceleração que me leva o músculo. A sério.

05/01/2018

Há determinadas lojas [físicas] que não percebo como é que têm arcaboiço para se manterem de pé

Se não, vejamos: a pessoa humana corre três ou quatro clássicas na busca de mais um par de botins, para aqueles dias em que não lhe apetecem saltos tão altos, nem tão baixos, nem os botins bordeaux, nem as botas de cano alto — as pretas ou as castanhas —, nem nada, e sim para poder calçá-los com saias e vestidos sem parecer uma gaja de Chelas, que o melhor mesmo era podermos andar descalcinhas e como eu compreendo a gaja do téne, a gaja da sabrina, a gaja do sapato Dr. Scholl*. Numa delas, que não vou dizer qual é, mas posso adiantar que é aquela do nome com um urso a quem tooooda a gente chama cerveja, encontra dois pares razoavelmente catitas, mas ambos sem par, ou seja, poderia trazer uma de cada, não fora correr o risco de parecer mais maluca do que já não é. Noutra delas, encontra online um par mesmo-mesmo-aquilo, que está descontinuado. Arre égua para este adjectivo, em se referindo a trapos e seus complementos. 
Ao cabo de mais umas quantas pesquisas — o meu disco rígido deve estar hirto de tanta loja e muito mais cheio do que o meu roupeiro — e buscas, eis que lhe surge o par ideal, não para a vida, não para a dança, não para a borga, mas para o exigente pezinho (ou para a exigente cabecinha, cada um interpretará). 
Ah, saldos, ah, que só há 35 e do 39 para cima, ah, que só há o que está exposto. 
Ah. Que só há para a dama pé de cabra e para a patuda em geral. Caneco, não se pode ser vulgar em lado nenhum, nem no tamanho do pé?
Já no lar, nem ao trabalho tive que me dar, de ligar a computa: foi mesmo através de Ai-fostes. 
1. Ir ao site;
2. Procurar pelo número da referência;
3. Escolher tamanho;
4. Adicionar ao cesto;
5. Confirmar compra;
6. Escolher método de pagamento;
7. Guardar referência, entidade e quantia.
Sete cliques. Só precisava de ter polegar para lá chegar.
(Claro que depois, como a minha vida tem que ser este filme exótico, ainda tive que ligar para o banco que me assiste o netbanking, e falar com uma operadora que, para além de não me ter resolvido o assunto, ainda fez a fineza de me arranhar os ouvidos quando eu protestei com a dificuldade que estava a ser proceder a um simples pagamento por MB, com "o banco não implanta essas medidas", e depois referindo-se à "empresa para a qual pretendo efectuar o meu pagamento" — palavras minhas —, chamando-lhe "Bresca".) (Ai, desculpem, não queria dizer o nome da loja. Bershka*, aquela a quem também há quem chame Bérssssca.)

*NMPPI

Só as démarches que uma senhora passa para chegar a isto

02/01/2018

Ela fala tanto # 21

Lembram-se daquilo dos cravas e dos pedinchas? Foi há bocado.

Sexta-feira, último dia útil — como se inúteis fossem os outros — do ano, dia em que lhe entreguei o ordenado + passe [que pago por inteiro há anos, embora ela tenha outro trabalho], tudo em notas, porque parece que a transferência demora mais do que é suportável, mas quero lá saber.
Havia dormido cá no lar um rapaz das amizades das minhas grandes crianças, que, chegado a desoras e por já não haver barco que o levasse a casa, antes de se encostar para se refazer da noitada, retirou as lentes de contacto dos respectivos olhos e colocou cada uma em sua chávena de café, a boiar no líquido próprio. 
Resumindo: ela chegou de manhã e deitou as lentes fora. Fui à óptica mais próxima, comprei uma caixa delas e deixei lá 22 pacas. Quando cheguei a casa, madame já se sumira, um providencial minuto antes da hora, não fosse cruzar-se com as minhas ventas da total rejeição. Assim, não me desejou bom ano, nem me deu a mim oportunidade para o fazer. 
Hoje, à queima-roupa, minutos depois de entrar: 
- Nem sabe o que é que me aconteceu na sexta-feira. Passei o fim de ano e o fim-de-semana todo a pensar nisso. 
- ...
- Então não perdi parte do dinheiro que estava no envelope?
- O ordenado?
- Sim, mas só uma parte. Depositei x [e disse-me o valor total do ordenado] e pus de parte o dinheiro para carregar o passe, mas, quando fui para o carregar, já não tinha o envelope na mala. Depois fui encontrar o envelope no meu caminho, já todo rasgado e sem dinheiro. 
- Quanto é que era?
- Vinte e cinco euros.
[Como se eu não soubesse que o passe dela ME custa € 36,20 de trinta em trinta dias.]
- Olhe, foi o karma, que isso foi quase exactamente o que eu deixei na óptica para pagar as lentes que a Sandra deitou fora.

(Antigamente, há muitos anos, havia uma otária em mim que responderia: "Ah, coitada, tome lá outros 25 e não se fala mais nisso".)
(A otária morreu.)

E o ano continua

Tenho que dar uma limadela neste post. Já o escrevi ontem e, quando o acabei, fartei-me dele. Trespassa-o uma amargura que não é intencional, mas isto nem tudo o que é, parece.

01/01/2018
Não numa base em fase de negação, não por querer que o tempo pare e não passe, simplesmente não me choca continuar em 2017, ou, pelo menos, não alterar coisa nenhuma, não expressar desejos que nada têm de novo em relação ao que quero para mim todo o ano, toda a vida: vê-los felizes, ser feliz assim.
Não foi o ano mais feliz da minha vida, nem o mais infeliz. Não consigo sequer eleger um para uma categoria dessas duas. Foram felizes os anos em que me nasceram filhos, mas o mesmo que me trouxe a primeira foi o que me levou o meu pai. Não tenho capacidade para arrebanhar trezentos e sessenta e cinco ou seis dias e fazer deles os melhores ou os piores. Nem quero. E espero que tal não venha a acontecer-me ao longo dos que me faltam ainda viver. 
Não pretendo, a partir de hoje, fazer nada em maior ou menor escala do que fiz nos últimos quatrocentos ou quinhentos dias. Não tenciono dançar mais, nem mexer-me mais, porque já o faço em doses suficientes para manter a cabeça acima do pescoço. Ainda ontem, se os anos efectivamente acabassem, terminei o meu, ao começar o dia, numa maratona de dança mais ginástica que me ia comprometendo a vigília, à noite.
Também não pretendo mudar alguma coisa em mim, não só porque já não vou a tempo, mas também porque me entendo muito bem com esta coisa que sou eu: não quero ser mais compreensiva, nem mais piedosa, nem mais humana, sob pena de me transformar numa ameba proteus, ou num rato. Foi precisamente o passar do tempo, a idade, a experiência, a capacidade para interpretar os sinais que a vida nos dá, ou sei lá o quê, que me ensinaram que há uma linha que separa a bondade da imbecilidade, que responde pelo nome de manipulação emocional. Ainda assim, tenho os meus momentos de fraqueza, dou sangue três vezes por ano, vai quase um litro e meio dele a cada ano que passa, contribuo todos os dias para a vacinação de uma criança vírgula qualquer coisa, alombo com sacos e sacos de comida cada vez que me entregam um vazio à porta do supermercado, atravesso velhinhos e cegos, beijo com os olhos todas as crianças que me sorriem e mesmo as que não, cuido dos meus animais com um desvelo devoto (mesmo daquela que me odeia e só não me devora as tripas se não me apanhar a jeito), mas já não papo números e fujo a sete pés, ou quantos tiver nesse dia, de chatos e cravas e sanguessugas e chantagistas da pedincha. Mesmo assim, ainda me apanham na curva, quando menos espero, quando menos posso, por isso acho que ainda não construí capazmente um jogo de cintura, embora reconheça que o que me dava mesmo jeito era uma varinha de condão que lhes fizesse pluft e mos eclipsasse do radar.
Também não pretendo trabalhar mais, porque isso já faço: tenho um trabalho ingrato, mas gratificante, pago à razão de miséria, mas que me enche de alguma coisa, que há-de ser a porcaria que significa dever cumprido.
Nem faço ideia de ler mais, porque leio pouco para o que devia, embora não conheça o significado desse conceito: a leitura tem que ser algo que nos gratifique, que nos ponha a viajar, que nos ensine, quanto mais não seja a escrever. Tudo coisas de que não preciso, portanto. De resto, não posso ler mais do que leio, pois entro no ritmo da escrita de quem escreve, e vejo-me ensarilhada para não começar a copiar o estilo, e isso é muito feio. 
Nos próximos trezentos e sessenta e quatro, nos próximos quatrocentos, nos próximos mil? Vou continuar a dançar, a amar e a providenciar pela felicidade dos meus — onde se incluem duas gatas e dois passarinhos —, não necessariamente por esta ordem, nem necessariamente nas mesmas doses. Não quero mais nada para 2018. Nem de 2018.